15 maio 2006

Aprisionamento da mulher


A historiadora Ana Paula Vosne Martins em seu livro “Visões do Feminino – a medicina da mulher nos séculos XIX e XX” (Editora Fiocruz) mostra como o estudo do corpo feminino pelo saber médico colaborou para o aprisionamento da mulher ao determinar seu papel na sociedade pelas características corporais, reprodutivas e sexuais. Para ela, a mulher do século XXI continua prisioneira do corpo, submetendo-se a intervenções médicas como plásticas e silicones, seguindo à risca as cartilhas da saúde e da beleza. Trata-se de uma versão mais moderna de controle da autonomia feminina.

O conhecimento científico sobre as diferenças humanas de gênero e raça, que começou a ser elaborado em meados do século XVIII e durante todo o século XIX, estabeleceu como verdade que a constituição física dos corpos seria uma espécie de base indelével que definia o destino ou a função dos indivíduos na sociedade

Como a ciência tem o poder de nominar as coisas, de dizer a verdade sobre elas, era um poder tão grande quanto o da religião. Para os termos do século XIX, isso significava estabelecer não só identidades, mas criar normas, fixar os objetos do conhecimento nos limites deste esquadro que é a norma. Quando os homens da ciência e da medicina enunciaram que a mulher era tão diferente do homem que nem pareciam pertencer à mesma espécie, isso teve um impacto na vida das mulheres. Naqueles tempos, como no nosso, as diferenças não convivem com a igualdade; portanto, as mulheres eram consideradas naturalmente indivíduos de segunda categoria, mais frágeis física e emocionalmente, mais suscetíveis aos ditames do corpo do que da razão. Tais idéias tinham uma força enorme, impedindo que as mulheres pudessem exercer direitos políticos, estudar, expressar livremente suas idéias, dizer não a pais ou maridos prepotentes, até mesmo praticar exercícios físicos como andar de bicicleta, por exemplo.

Ao estudar o corpo feminino e sua capacidade reprodutiva, a obstetrícia contribuiu para limitar a definição do feminino à maternidade, afirmando que qualquer desejo por algo além desta norma do corpo era um sinal de desvio, caminho para patologia. Não é coincidência que só no século XIX a representação da mãe devotada passasse a estar tão presente no imaginário, seja na religião, nas artes, na literatura ou na escrita médico-científica. Mas foi a ginecologia que contribuiu mais decisivamente para este aprisionamento da mulher ao corpo.

A grande questão da ginecologia não era a capacidade reprodutiva, mas entender o que era a mulher. Questão ideológica. Os médicos voltaram-se para o interior do corpo feminino, mais especificamente para o baixo ventre, procurando nos órgãos sexuais as respostas para a distinção feminina. Útero e ovários passaram a ser uma metonímia da mulher: ou elas se enquadravam na norma da maternidade ou criam no terreno pantanoso onde proliferam as patologias de etiologia sexual.

Ao estudar a produção cultural masculina sobre o feminino no século XIX e começo do século XX, Ana Paula percebeu o quanto a diferença feminina constituía um problema para aqueles homens cultos. Primeiro, o mistério – criaturas misteriosas despertam fascínio, mas também medo. Esta cura de mistério, criada pelo desejo de conhecer e de possuir ao mesmo tempo, é um dos elementos fundamentais para se entender a imagem ambígua da mulher que oscila entre mãe nutridora e amorosa e a mulher fatal. Essa ambigüidade não se restringe às páginas dos livros e jornais ou obras artísticas, mas extravasa para a vida social, participando de uma construção social que inferioriza e as exclui as mulheres, pois as imagens da normalidade e da anormalidade são como o positivo e o negativo de uma fotografia. Adorada ou temida, enaltecida ou execrada, a mulher permanecia o outro, por excelência, da cultura ocidental.

O controle social continua a ser a principal semelhança entre a mulher – corpo do século XIX e a mulher corpo de hoje. As do passado estavam presas a vertas “verdades” sobre seus corpos, como a fragilidade e o perigo para a sua saúde física, e, principalmente, mental caso ousassem romper com estas verdades. Hoje o controle sobre as mulheres está embalado no pacote da saúde, da beleza, da juventude, do dinamismo, enfim, do bem-estar fotogênico que consumimos todos os dias.

A indústria da beleza, com toda a sua diversidade, também afeta os homens, mas as mulheres estão na sua origem e continuam a ser o alvo privilegiado. Hoje, não basta ser uma boa profissional, ser competente no que faz, ter seu espaço e ser respeitada pelo que é. Se você não for tudo isso e mais uma milhão de outras coisas relacionadas ao que você aparenta, então não será percebida e, na nossa cultura visual, isso pode ser um problema, uma fonte de frustração e de amargura. Enquanto as mulheres do século XIX estavam presas aos limites do corpo (limite estes criados pelos homens de ciência e de medicina), as mulheres dos séculos XX e XXI estão presas à imagem de um corpo jovem, magro, plástico, bem vestido, pronto para a Câmera que aprisiona.

Um comentário:

Anônimo disse...

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