A vida humana tem uma história que pode
ser contada e pode servir de documento. Pode
servir de lente através da qual se vê e compreende o mundo todo. Contar
histórias é algo intrínseco ao ser humano e faz parte da nossa vida. Depois de
escrever sobre Benício, Alceu Penna, Flavio Colin, José Luis Salinas, Evaldo
Braga, Assis Valente, Rubem Alves, Vadico e muitos outros, o jornalista,
escritor e pesquisador baiano Gonçalo Junior se debruçou na trajetória do Deus
da Sacanagem: a vida e o tempo de Carlos Zéfiro, obra lançada há poucos
meses pela Editora Noir.
Zéfiro indiscutivelmente foi o mestre
supremo das HQs pornográficas tupiniquins. Durante mais de quatro décadas ele
foi uma das lendas mais intrigantes no mundo dos quadrinhos brasileiros. Em
1991 a revista Playboy fez o mito sair do anonimato. Carlos Zéfiro era o
pseudônimo de Alcides de Aguiar Caminha (1921 - 1992), um discreto funcionário
público carioca cujo currículo, além das cerca de 800 historinhas pornográficas
escritas entre o final dos anos 40 e os anos 80, também ostentava alguns dos
maiores clássicos do samba brasileiro – a maior parte dos quais composto em
parceria com Nelson Cavaquinho. Zéfiro era o autor de quadrinhos que fizeram a
educação sexual dos brasileiros nos anos 1950 e 1960. Nas suas revistas
clandestinas, que ganharam o apelido de “catecismos” (por terem o mesmo formato
dos livretos usados nas igrejas para o ensino de religião), havia sempre
histórias picantes.
A escolha de um pseudônimo veio da
necessidade, uma vez que seus quadrinhos eram repreendidos pela sociedade
conservadora da época, porém fazia sucesso nas vendas às escondidas, sendo, por
vezes, a única fonte de informação erótica de muitos jovens da época. A
repressão só aumentou com a Ditadura Militar, época em que foi perseguido
incansavelmente, mas nunca conseguiram o prender, afinal só foi revelado em
1991.
Carlos Zéfiro (o mestre dos quadrinhos
pornôs brasileiros) soube como ninguém retratar o sexo como ele o é na vida
real, sem falsos pudores, sem hipocrisia, com tesão, com poesia, não
respeitando nenhum tabu e desvendando-nos todas as fantasias. Ele dizia-se
honrado por fazer parte da história do Brasil. Mas não se importa muito.
Afinal, "tudo na vida é muito efêmero. Hoje se está no apogeu, amanhã no
ostracismo".
Em 1970, durante a ditadura militar, foi
realizada em Brasília uma investigação para descobrir o autor daquelas obras
pornográficas que chegou a prender por três dias o editor Hélio Brandão, amigo
do artista, mas que terminou inconclusa. Em 1992 recebeu o prêmio HQMix, pela
importância de sua obra. Após sua morte teve um trabalho publicado como
homenagem póstuma em 1997 na capa e no encarte do cd "Barulhinho Bom"
da cantora Marisa Monte.
Utilizando uma linguagem chula, Zéfiro
permeou todo o imaginário popular. Por suas páginas, desfilaram as grandes
musas da garotada: viúvas sedentas, desquitadas carentes, padres devassos,
freiras pecaminosas, refletindo a realidade provinciana e reprimida do nosso
velho Brasil.
Artista clandestino, desenhista lascivo,
sacana naïf, lenda. Carlos Zéfiro colecionou muitas definições durante o
período em que alimentou os sonhos eróticos de milhares de adolescentes, entre
as décadas de 50 e 70. Para uns, os desenhos de traços simplórios de Zéfiro
eram nada mais que perversão e projeções de uma mente doentia. Para outros,
arte underground, "cult" total.
Para melhor compreender o fenômeno, é
fundamental transportar à época em que esses quadrinhos foram produzidos, com
governos autoritários e conservadores, bem como forte influência da Igreja
Católica no comportamento da juventude. Naqueles tempos, onde a pornografia era
proibida por lei e tudo tinha sabor de descoberta, representações visuais e
explícitas do sexo eram praticamente inexistentes no Brasil, fazendo com que os
adolescentes aliviassem suas tensões com compêndios de medicina, imagens de
tribos indígenas ou quando muito com alguns romances mais picantes de Jorge
Amado. As "casas de luz vermelha" eram verdadeiras instituições, onde
o garoto era levado pelo pai para "ter sua primeira vez", no que era
auxiliado pela prostituta, profissional e expert que lhe daria todo o suporte e
conhecimentos básicos para não fazer feio na lua-de-mel, já que a noiva do
cliente era "moça de família" e nunca transaria antes do casamento.
Embora a "moral" e os "bons costumes" já fossem verdadeiras
piadas, as pessoas ainda fingiam levá-los a sério, e em meio a este cenário
deveras bizarro, a obra zefiriana surtiu como uma bomba atômica.
Vários foram os artistas que se
dedicaram a estas publicações, mas devido à peculiaridade de seu trabalho e ao
fato de ser o mais prolífico de todos, Zéfiro foi o único que se destacou,
angariando uma legião de fãs e imitadores. Como desenhista, era medíocre:
faltava-lhe conhecimento de anatomia, as imagens eram visivelmente decalcadas
de outras fontes e, de um quadrinho para o outro, os personagens costumavam
sofrer mudanças físicas inexplicáveis. Todavia, estes desenhos toscos tinham um
charme especial e eram cheios de estilo, bastando uma rápida passada de olhos
para reconhecer o autor, que supria as deficiências de seu traço com textos
envolventes e ótimos roteiros.
As revistinhas de Zéfiro marcaram várias
gerações e começou a sair do campo proibitivo e a ganhar status na área da
sociologia. Duas obras regataram Zéfiro do mundo da subliteratura: O Quadrinho
Erótico de Carlos Zéfiro, uma análise de Otacílio d´Assunção, e A Arte Sacana
de Carlos Zéfiro, edição organizada por Joaquim Marinho com textos de Roberto
da Matta, Sérgio Augusto e Domingos Damasi. Agora com a obra de Gonçalo Junior
há descobertas enriquecedoras numa narrativa fluente, prazerosa, tudo
cuidadosamente reconstruído e explícito, como revela Franco de Rosa no
prefácio.
São dez capítulos e um epílogo (Em busca
da verdade) onde toda a obra de Zéfiro é lida com as mãos, “através dela,
Gonçalo escancarou um universo da cultura brasileira do qual pouco sabíamos –
porque, até agora, escondido por portas fechadas”, conta Ruy Costa. Vale a pena
conferir!
A
Vida e o Tempo de Carlos Zéfiro
Gonçalo
Junior
Formato:
14x21 cm, 384 páginas
Preço:
R$ 59,90 (frete grátis para todo o Brasil): https://www.editoranoir.com/zefiro
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