25 novembro 2009

Erudito e popular

É preciso se aprofundar mais a dimensão geográfica e espacial das culturas erudita e popular, que se reconheçam os diferentes entrelaçamentos do temporal com o espacial e seus efeitos estéticos. Afinal, culturas das cidades e as percepções estética e social de espaço que elas produzem são fundamentais para colocar em discussão. A própria distinção erudito-popular, em sua metaforicidade espacial, pode ser ligada pragmaticamente aos diferentes espaços urbanos de produção e consumo urbano, tais como a rua, o bairro, o museu, a sala de consertos e a ópera, o local turístico e o shopping center.

A tão propalada globalização em curso não tem colocado (ainda) a fusão criativa de erudito e popular como alguns imaginaram em décadas anteriores. A cultura erudita como cimento que dava identidade de classe e coesão nacional está ultrapassada. Muitos estudiosos preferem introduzir outras distinções em termos de gosto ou hábito.

Houve uma época em que erudito e popular eram definidos com bastante clareza em sua separação. Erudito estava codificado pelo museu universal, a academia, o sistema de galeria, o filme de arte. Já o popular era visto como entretenimento de massa, esportes de audiência, rock e música country, romances baratos, histórias de detetives e ficção científica, filmes de Hollywood, televisão e histórias em quadrinhos.

Enquanto o erudito gozava da solidez do arquivo (obras ambiciosas e originais que valiam ser incorporadas na tradição), o popular representava as produções efêmeras, sujeitas aos ditames da moda e assegurado por um sistema de repetição e reprodução.

A produção de cultura erudita se caracterizava pela baixa velocidade de giro do arquivo, ou seja, baseada antes em acumulação lenta. Já a produção de cultura popular ou de massa, por outro lado, sempre esteve sujeita à alta velocidade de giro de uma sociedade de consumo, seus prazeres passagens e sua necessidade de renovar constantemente.

Essa dicotomia rígida da divisão erudito-popular tanto refletia uma visão política e social do mundo como tinha a ver com critérios ilusórios de julgamento e qualidade estética. Esse binário foi abolido por uma nova lógica de circulação cultural produzida por tecnologias de mídia. Mas isso não quer dizer que a diferença entre arte erudita e cultura de massa não existe mais. Ela continua a existir em sociedades ocidentais ou em outros lugares. Sempre restarão diferenças em qualidade e ambição entre produtos culturais, diferença em complexidade, conhecimento por parte do consumidor, etc. O que mudou foi a divisão vertical que se tornou, nas últimas décadas, uma zona fronteiriça horizontal de trocas e pilhagens e todos os tipos de intervenções híbridas.

È preciso prestar mais atenção às maneiras pelas quais práticas e produtos culturais se ligam aos discursos do político e do social em constelações locais e nacionais específicas. É preciso focar as operações e funcionamento de culturas públicas e o papel cambiante da crítica dentro delas. As hibridizações de todos os tipos acontecem agora, cada vez mais sob o signo do mercado. O que é preciso é observar esses mercados que tendem a domesticar e igualar as arestas brutas e inovadoras da produção cultural, pois prefere a fórmula de sucesso em vez de encorajar o ainda desconhecido, a experimentação e modos incomuns de expressão artística.

A filósofa e professora da Faculdade de Letras e Ciência Humanas da USP, Marilena Chauí, em sua obra “Conformismo e resistência” (1987) demonstra a distinção entre cultura de massa e cultura popular: “Para usarmos uma expressão de Foucault, a Comunicação de Massa se insere no campo de tecnologias de disciplina e vigilância (donde a busca de transparência para garantir que tudo pode ser dito e mostrado), regulando-se pelo ideal panóptico do olho que tudo vê, ou pelo olhar de sobrevôo, na bela expressão de Merleau-Ponty. Em contrapartida, as ações e representações da Cultura Popular se inserem num contexto de reformulação e de resistência à disciplina e à vigilância. Nela o silêncio, o implícito, o invisível são, frequentemente, mais importantes do que o manifesto”.

Modernistas e tradicionalistas quiseram construir objetos puros. Os primeiros imaginaram culturas nacionais e populares “autênticas”. Procuraram preservá-las da industrialização, da massificação urbana e das influências estrangeiras. Os modernistas conceberam uma arte pela arte, um saber pelo saber, sem fronteiras territoriais, e confiaram à experimentação e à inovação autônomas suas fantasias de progresso. As diferenças entre esses campos serviram para organizar os bens e as instituições. O artesanato ia para as feiras e concursos populares, as obras de arte par os museus e as bienais.

Essa compartimentação maniqueísta começa a perder espaço. Para o estudioso Néstor Garcia Canclini (Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade) a modernização diminui o papel do culto e do popular tradicionais no conjunto do mercado simbólico, mas não os suprime. Redimensiona a arte e o folclore, o saber acadêmico e a cultura industrializada, sob condições relativamente semelhantes. O trabalho do artista e do artesão se aproximam quando cada um vivencia que a ordem simbólica específica em que se nutria é redefinida pela lógica do mercado.
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