09 outubro 2008

Identidade


Uma década atrás um cartaz espalhado pelas ruas de Berlim apontava para o colapso da idéia de identidade que não era capaz de conter as realidades do mundo: “Seu Cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia – grega. Seu café – brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro”, era o que estava escrito no pôster desafiando os alemães. O cartaz traz implícito a globalização que significa – o Estado não tem mais o poder ou o desejo de manter uma união sólida e inabalável com a nação. A intensa chegada de migrantes árabes, asiáticos e sul-americanos na Europa cresceu a xenofobia e o racismo. A convulsão social na França, em que migrantes ou filhos de migrantes desesperançados partem para a violência para exigir seu lugar na república francesa, confirma a tese da falência de uma noção clássica chamada identidade.

Hoje em dia, ter uma identidade ou conserva-la a qualquer preço se tornou a grande obsessão do mundo moderno. Essa obsessão se manifesta não apenas no fundamentalismo xiita do mundo islâmico, mas também no fundamentalismo cristão do presidente norte americano Bush. E nenhuma parte do mundo a ela está imune.
Identidade é objeto de um livro (Jorge Zahar Editor), do sociólogo polonês – naturalizado britânico – Zymund Bauman. No mundo de hoje, qual é o espaço do eu e do outro? Qual é a medida da liberdade individual? E do respeito ao próximo, com todas as suas diferenças/ É possível construir uma identidade sem levar a alteridade (o outro) em conta? A sobrevivência de um Estado-nação moderno pode se afirmar na falência ou na negação de outros estados?
Nessa entrevista que concedeu ao jornalista italiano Benedetto Vecchi, Bauman mostra como a identidade se tornou um conceito-chave para o entendimento da vida social na era da “modernidade líquida” – termo que ele cunhou para falar do esgarçamento das relações na atualidade. Segundo Bauman, à medida que nos deparamos com as incertezas e as inseguranças da “modernidade líquida”, nossas identidades sociais, culturais, profissionais, religiosas e sexuais sofrem um processo de transformação contínua. Isso nos leva a buscar relações transitórias e fugazes e faz com que sofram as angústias inerentes a essa situação.
No mundo em que tanto a noção de individualidade como o de coletividade começaram a falhar a idéia de identidade ganhou importância. Mas a busca de identidade se faz sob fogo cruzado e sob a pressão de duas forças contraditórias. Tanto aponta para o desejo de uma emancipação individual, como para o de integração a um grupo. Assim a busca navega entre dois extremos inconciliáveis: o da individualidade absoluta e o da entrega absoluta. Enquanto a individualidade absoluta é inatingível, a entrega absoluta faz desaparecer todo aquele que dela se aproxima.
Tanto suas teses sobre a falência da identidade, como suas idéias a respeito das vidas humanas desperdiçadas, desprovidas de trabalho, de dignidade, de um chão (no livro Vidas Despediçadas) se materializaram recentemente nos violentos protestos de migrantes e filhos de migrantes que se disseminaram por toda a França e países vizinhos. Autor da tese de que o mundo moderno e globalizado de hoje se tornou “líquido”, asa fronteiras se esfacelaram, as seguranças se dissolveram, e vivemos, em conseqüência, à deriva.
“Durante a maior parte da era moderna, cada classe tinha a sua trilha de carreira, uma trajetória estabelecida de maneira clara. Como Jean-Paul Sartre afirmou de modo admirável, para ser burguês não basta ter nascido na burguesia – é preciso viver a vida inteira como burguês! Quando se trata de pertencer a uma classe, é necessário provar pelos próprios atos, pela ´vida inteira´ - não apenas exibindo ostensivamente uma certidão de nascimento -, que de fato se faz parte da classe a que se afirma pertencer. Deixando de fornecer essa prova convincente, pode-se perder a qualificação de classe, tornar-se déclassé”, afirmou o sociólogo em seu livro.
“Hoje em dia – comentou Bauman na entrevista -, um século e meio depois, somos consumidores numa sociedade de consumo. A sociedade de consumo é a sociedade do mercado. Todos estamos dentro e no mercado, ao mesmo tempo clientes e mercadores. Não admira que o uso/consumo das relações humanas, e assim, por procuração, também de nossas identidades (nós nos identificamos em referência a pessoas com as quais nos relacionamos), se emparelhe, e rapidamente, com o padrão de uso/consumo de carros, imitando o ciclo que se inicia a aquisição e termina no depósito de supérfluos”.

Desta forma, a busca da identidade gera perigos e é uma rota de batalhas intermináveis e sem conclusão. A busca de uma identidade reafirma a inconstância e a precariedade do mundo globalizado. A expansão do fundamentalismo religioso parece ser um efeito dessa obsessão pela identidade na esfera de massa. Trata-se de uma guerra sem vencedores, embora a “causa da identidade” possa continuar a ser ostentada.

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