05 julho 2006

Qualquer palavra vale mais que mil imagens

“Mais vale uma palavra a tempo do que cem fora de tempo”. A frase é do novelista espanhol Miguel de Cervantes. Nos dias do texto condensado, da brevidade da notícia, do “já não há tempo para ler”, vale mais uma imagem que mil palavras. Fernando Savater no jornal El País inverte a relação de domínio entre a imagem e a palavra: qualquer palavra vale mais que mil imagens, já que pode suscitar todas as imagens, não sendo tão plausível o contrário, pelo menos porque a palavra suscita mais ativismo intelectual e menos passividade contemplativa ou emocional. E Savater cita o politólogo italiano Giovanni Sartori: “O homem que lê, o homem da galáxia Gutemberg está constrangido a ser um animal mental; o homem que vê, e nada mais, é unicamente um animal ocular”.

Savater apresenta as deficiências da informação por imagens: provoca mais emoção que raciocínio e privilegia o movimento em relação à estabilidade, não deixando, todavia, por um efeito paradoxal, de provocar um virtual “embrutecimento gregário”; provoca comoção, mas não ajuda no processo decisional (particularmente quando se trata de jogar com causas remotas e complexas); a exigência intrínseca de velocidade na informação por imagens inibe tendencialmente a reflexão, entendida como “pausa analítica”. É, por isso, virtualmente anti-intelectual. Mesmo assim, o elogio savetariano da leitura e da escrita não retira, realisticamente, virtudes à civilização videológica. A passagem da galáxia Gutemberg para a galáxia Lumière não pode deixar-nos a anos luz da força primordial da escrita, como se passasse do mundo em que a filosofia era serva da teologia para o mundo em que a escrita se torna serva da imagem.

Muito já se escreveu sobre o homem-vídeo, aquele que vê sem saber, que vê tudo mas nada decide. E quando decide, o faz por aquilo que outros lhe dão a ver. É a tal videocracia, a substituição da soberania popular pela soberania da imagem, do vídeo, do simulacro. É a videocracia vista como a simulação democrática da era pós-moderna.

O assunto é velho e novo ao mesmo tempo. Ítalo Calvino e Píer Paolo Pasolini, em dois textos bem diferentes e afastados no tempo, refletem criticamente, mas com grande coincidência de pontos de vista, sobre a chamada civilização da imagem. Calvino afirma (no texto de 1984) que corremos o risco de vir a perder essa “faculdade humana fundamental” de “pensar por imagens”, tal o dilúvio de imagens pré-fabricadas que está a inundar, cada vez mais, a Humanidade. Pasolini, por sua vez em texto de 1974 vê na televisão o médium mágico que, por força da sua linguagem físico-mímica ou comportamental, consegue fazer passar diretamente, sem mediações, um abstrato “modelo de vida” para os comportamentos de milhões de sujeitos reais, quais “cópias” vivas dos modelos representados no vídeo. De tal modo que “os heróis da propaganda televisiva (...) proliferam em milhões de heróis análogos na realidade”. Uma espécie de versão microeletrônica e de massas da mais elitista teoria platônica das idéias.

O que está em causa é essa dimensão crítica, analítica, reflexiva e ativa de uma cultura (humanística) que pressupõe uma relação vivida originária e mediada com a realidade, sem sobreposições arbitrárias ou mesmo caóticas de “condensados” mentais produzidos e difundidos à escala mundial como simples produtos de mercado. Questiona-se a cadeia de efeitos que o dilúvio de pré-fabricados mentais ou comportamentais pode provocar num indivíduo moderno, carente de vínculos comunitários. Esse fluxo da imagética televisiva irrompeu impondo e promovendo padrões de vida, estereótipos ou modos comportamentais que são rapidamente assimilados pelas populações à escala mundial.

A publicidade é citada em várias dessas reflexões porque cria fetiches que geram, atraem e modelam comportamentos. Não tanto pelos produtos publicitados, mas sobretudo pelas escalas de valores a que são referidos e pelas situações, pelos contextos expressivos recriados ou representados como “naturais” do próprio produto. O que se torna socialmente relevante são as situações estilizadas ou representadas como estereótipos e que, por isso, se tornam expressivamente ideais – de imitar, portanto.

Quem não se lembra dos filmes hollywoodianos dos anos 60 a 70 onde os “heróis” fumavam o tempo todo (depois de uma trágica luta ou mesmo depois de fazer sexo) e aquilo passou a ser a realidade de todos. Todos queriam imitar o “herói”. Por trás do heroísmo uma falsa publicidade criando modelos ideais. Além do cigarro, o uso do álcool nos filmes (wisque, tequila entre outras) era uma prova de coragem, de força, de vitalidade. O que se mostrava era publicidade subliminar. E o império do consumo, a magia da publicidade, “o mundo às suas mãos”, toda essa gigantesca feira tornou-se obsoleta a tradição humanística, tornando simplesmente arqueológicos os modelos comunitários de produção e reprodução do imaginário social.

2 comentários:

Anônimo disse...

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