18 agosto 2022

Monstro que dorme em cada quadrinho: estereótipo (4)

 

Estereótipo é um conjunto de características presumidamente partilhadas por todos os membros de uma categoria social. Quando nossa primeira impressão sobre uma pessoa é orientada por um estereótipo, tendemos a deduzir coisas sobre a pessoa de maneira seletiva ou imprecisa, perpetuando, assim, nosso estereótipo inicial.

 

A mulher é um ícone de estereótipo trabalhado pela propaganda ao longo dos anos. Desde o início, foi retratada como mãe, dona de casa e sexo frágil. Nos quadrinhos de super-heróis a partir de 1930 a maioria dos personagens negros eram estereótipos de criminosos ou pessoas com sérios problemas sociais.

 

Hoje ainda permanece uma ideia de que as histórias em quadrinhos reproduzem todo o estereótipo da indústria cultural, constituindo mero artigo de entretenimento concebido em laboratórios de vendas de grandes companhias. Independentemente de qualquer mérito apresentado pelas críticas aos produtos de uma indústria cultural, o que preocupa é o desconhecimento das mais variadas expressões que a arte dos quadrinhos já conquistou, desde Winsor McCay (autor de enquadramentos que anteciparam em muitos anos as ousadias de Orson Welles) ao expressionismo de Mort Cinder de Alberto Breccia ou Corto Maltese, um personagem psicologicamente muito complexo resultado das experiências de viagem e da capacidade infinita inventiva de seu autor, o italiano Hugo Pratt.

 

O estereótipo mantém relação estreita com o conceito de estigma, que, originalmente, designa ferimento, cicatriz. Seus derivados, "estigmatizar", "estigmatização", têm o sentido de censurar, condenar, aviltar o nome, a reputação de alguém. No sentido usual, significa prejudicar, ou fazer um julgamento prematuro de alguém; julgar pela aparência. Embora seu caráter disfórico, a estigmatização é um processo comum tanto nas relações interpessoais quanto sociais e ocorre sempre que o individual passa a caracterizar o coletivo. Daí as generalizações estigmatizadas: "o nordestino", "o turco", entre outros, que caracterizam o discurso xenófobo, que há anos tenta transformar em ódio os males da sociedade, tais como o desemprego, a exclusão social, a delinquência, a droga, etc.

 

Empregado pelos diferentes meios de Comunicação de Massa, muitas vezes, numa enunciação passional revestida por figuras que resgatam antigos valores ou impõem outros, o estereótipo adquire status de mito e sua utilização revalida valores da cultura (ideologia).

 


 

A percepção de que a cultura de massas estava fundando uma constelação de “mitos modernos” permeia a obras de alguns teóricos (Eco, 2001: Morin, 1977; Barthes, 1985). Mais do que recriarem, a atmosfera das velhas heranças mitológicas, na eterna disputa do bem contra o mal, as HQS recriaram a própria definição do mito, reificando paradigmas cooptados do social, como grande apelo à sua sobrevivência. Como ilustra Morin: “Um gigantesco impulso do imaginário em direção ao real tende a propor mitos de auto-realização, heróis modelos, uma ideologia e receitas práticas para a vida privada. (…) E é porque a cultura de massa se torna o grande fornecedor dos mitos condutores do lazer, da felicidade, do amor, que nós podemos compreender o movimento que a impulsiona, não só do real para o imaginário, mas também do imaginário para o real. (MORIN, 1977, p.90).

 

Se partirmos da mitologia barthesiana, entenderemos as representações sociais nas HQs como um desvio do real, por meio de um recorte de uma realidade possível, na qual se abstrai o conteúdo. A intenção da significação está “de algum modo petrificada, purificada, eternizada, tornada ausente pela literalidade” (BARTHES, 1985, p.145), ou seja, destituindo os significantes de conotação histórica, “transformando a história em natureza” (idem, p.145).

 

O estereótipo pode não ser verdadeiro, mas é verossímil. E parte da naturalização das características encontradas no entorno social de seu tempo. Seja no Gato Felix (Pat Sullivan, 1923) que é tão ladino, noir e sinuoso quanto o Spirit (Will Eisner, 1940). Jogos de luzes e sobras e a máscara negra impregna de mistério estes dois anti-herois. Blondie (Chic Young, 1930) e Aninha, a órfã (Harold Gray, 1924) reciclam o mito da Cinderela: a jovem virtuosa que ascende socialmente pelas mãos do herói romântico. No primeiro caso, o mocinho regride ao renunciar à herança da família em nome do amor verdadeiro, e de forma platônica, no segundo, na historia da menina órfã quer cai nas garras do benfeitor milionário. Ambas surgem num momento de emergência dos valores burgueses, em meio à recessão americana dos anos 30.

 

Já no caso dos heróis, tidos como fantásticos, supremos, sublimados à última esfera, o sentido mitológico torna-se ainda mais latente. Ideologicamente comprometidos, atados a um conceito abrangente de nação, possuíam um patriotismo obstinado (denunciado pelas cores e símbolos de seu uniforme) apesar dos poderes advindos do contato com forças estranhas ao seu universo, sejam partículas radioativas, extraterrestres ou deuses de uma mitologia ancestral. Todos esses personagens deixam de ser puro entretenimento para deleite do público, para tornarem-se estrelas, donos de fama e evidência. Assim, os títulos (seja do Batman, Superman, Homem Aranha etc) passaram ao status de marcas, e a euforia consumista resultava em produtos híbridos (desenhos animados, séries de TV, filmes, trilhas sonoras, musicais, bonecos, álbuns de figurinhas, jogos de videogame, RPG, linha de produtos escolares, de higiene, beleza, em brindes nas redes de fast foot. As possibilidades são infinitas). As HQs eram então um viável empreendimento do star system. (Texto publicado em 2011)

 

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