21 fevereiro 2008

A Medicina aliou-se à Igreja (3)

O relatório de Caminha tem a intenção tanto de encantar como de escandalizar. A beleza e a inocência dos nativos é exaltada através de vívidas referências exatamente àquelas partes que, no universo moral da sociedade do próprio Caminha, deviam ser mais escondidas e omitidas. E os viajantes do Velho Mundo trataram de levar a sério o trecho da Bíblia, no Velho Testamento que invoca a máxima “crescei e multiplicai-vos...”. E foi o que aconteceu. Afinal, os portugueses vieram de um mundo onde as mulheres se cobriam dos pés ao pescoço e chegaram a um paraíso, onde as nativas viviam nuas. O processo de colonização foi o resultado da construção de alianças entre nativos e brancos. Para os índios, os portugueses eram parceiros nas suas guerras, enquanto eles representavam mão-de-obra gratuita para os europeus.

Avesso às tarifas civilizatórias do invasor, os índios foram considerados preguiçosos. Então, os portugueses decidem importar mão-de-obra da África, transformando, do mesmo passo, homens livres em escravo. Esses novos habitantes chegaram na condição de escravos, mão-de-obra que garantiria o sucesso da colônia. A miscigenação foi estimulada no processo de colonização. E a mistura de branco com índio, dando caboclo/mameluco; branco com negro, resultando no mulato; e negro com índio, que deu o cafuso, foi só o começo da história.

A mistura das três raças, o índio, o português e o africano, como a chave da sua constituição histórica, a questão da sexualidade, da interação sexual como mecanismo concreto da mistura racial, assumiu uma importância sem paralelos no pensamento moderno brasileiro. O clássico “Retrato do Brasil: Ensaio sobre a Tristeza Brasileira”, de Paulo Prado, publicado em 1928, traz uma visão pessimista e estigmatizada do nosso povo. Prado argumenta que a tristeza brasileira está ligada aos próprios impulsos que caracterizaram tanto a descoberta como a colonização: à luxúria e à cobiça. Ele explicita o significado da tristeza, que passa progressivamente a denominar, a partir de um vocabulário médico, de melancolia. Informa ainda que a melancolia é o estado físico e psíquico decorrente da “hiperestia sexual”.

De tantos excessos sexuais e vícios da multiplicação das “uniões de pura animalidade”, desde os inícios da colonização no Brasil, tornamo-nos um povo triste, cansado, prostrado. A terra virgem, a mata abundante, os rios caudalosos, a natureza farta, o clima, “o homem livre na solidão”, o encanto da nudez total das índias, posteriormente a presença das negras sensuais, tudo, na formação histórica do País, contribuiu para que nos tornássemos um povo mole, instintivo e sensual. Dionisíaco em comparação com os americanos apolíneos.

O pessimismo sobre o povo brasileiro na visão desse historiador parece assentar-se na concepção altamente negativa da sexualidade que tem o próprio autor, para além de toda a influência do darwinismo social em sua obra. Muitos historiadores basearam-se em fontes documentais para construir suas interpretações históricas de nosso passado e certamente os viajantes, inquisidores e colonizadores que desvendaram o país, desde o século 16, além do olhar masculino, traziam toda a bagagem de preconceitos culturais da Europa renascentista, por meio da qual codificaram as práticas sociais e sexuais. Assim, enxergaram nas práticas sexuais dos indígenas todos os vícios que o cristianismo lhes ensinava ver.

Antonio Risério em seu livro “Uma História da Cidade de Bahia” observou que dois escritores da época, o católico Claude d’Abbeville (que encontrava dificuldade para desviar seus olhos das ameríndias nuas) e o calvinista Jean de Léry, concordam num ponto importante em suas reflexões obsessivas sobre as fontes da tentação. Ambos observam que a nudez cotidiana, habitual, das índias brasileiras era menos perigosa, como germe ou manancial da lascívia, do que as vestes sedutoras das mulheres européias. Ou seja – a lucidez missionária constata que a via para o pecado está menos na nudez rotineira do que no vestuário erotizante; menos no corpo que se exibe sem atavios de sedução do que no corpo que se cobre para insinuar e sugerir; menos no que se mostra do que no que se entremostra; menos na fêmea que no fetiche.

Segundo o pesquisador, os índios ensinaram os brancos os caminhos da água e da terra, as virtudes e os venenos da flora e da fauna – o que plantar, o que comer, o que fazer. Em suma, submeteram os europeus a uma pedagogia ecológica. A uma didática dos trópicos brasílicos. Sem essa pedagogia tropical, os portugueses não teriam sobrevivido aqui. Em contrapartida, os índios não receberam dos europeus nada que fosse tão fundamental. A grande maioria das coisas que os portugueses lhes ensinaram contribuiria apenas para a sua desintegração final, a curto, médio e longo prazos.

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