30 setembro 2009

Pornografia deixa a alcova para passear à luz do dia (3)

LONGA CRISE - "O único ciúme que existe é o sexual", disse a francesa Catherine Millet na sua palestra, em que foi entrevistada pela psicanalista brasileira Maria Rita Kehl. Definindo-se como "uma exploradora desse pequeno território que sou eu mesma", Millet falou sem constrangimento sobre seu sofrimento durante uma longa crise de ciúmes dos casos extraconjugais de seu marido, relatada em seu livro mais recente, "A outra vida de Catherine M.". Catherine tem com o marido uma relação aberta, e já havia relatado suas aventuras sexuais em "A vida sexual de Catherine M.". Apesar da própria liberdade sexual, porém, há alguns anos, ao se deparar com anotações do marido e cartas das amantes, ela se descobriu ciumenta. “Eu sofria com o ciúme e também com a descoberta desse aspecto desconhecido de mim mesma”, contou.

Ciúme que se combinava a uma fantasia masoquista de traição que era recorrente em suas masturbações, disse, mas que foi avassaladora quando se apresentou como realidade. “Só ao perceber, na análise, que no fundo eu estava gostando de sofrer por ciúmes é que a crise começou a se dissipar”.
A Revista da Cultura traz uma entrevista com Catherine Millet. Ela ficou exposta como uma mulher independente, intelectual e aparentemente bem resolvida na vida conjugal. Mas, talvez essa imagem que alguns poderiam ter de Catherine não fosse tão tranquila assim. No ano passado, ela voltou às livrarias com um novo trabalho Jour de Souffrance (Dia de Sofrimento). Desta vez, surpreendeu seu público ao contar como foi afetada por um incontrolável e violento ciúme que sentiu das relações extraconjugais do seu companheiro: o escritor e fotógrafo Jacques Henric. Eis trechos da entrevista:
Seu livro mostra que mesmo uma moral libertária e o fato de assumir uma sexualidade muito livre não impede que se caia na armadilha do ciúme. Segundo suas palavras, você viveu o ciúme como uma pulsão primária e devastadora. Como foi essa experiência?
Infelizmente, penso que se pode ter uma filosofia de vida e convicções que um dia entram em contradição com movimentos do inconsciente. É algo ainda mais primitivo no fundo da psique humana, e que pode ser da ordem do ciúme. Seguidamente me perguntam se penso que me enganei, se questiono a filosofia libertária, e minha resposta é negativa. Se vejo pessoas ao meu redor que seguem esse modo de vida e que escapam do ciúme, eu lhes direi que ela têm muita sorte e tanto melhor. Eu continuo convencida de que o amor e a sexualidade são coisas distintas, e que nessas condições é melhor preservar no seio do casal uma certa liberdade sexual. Não questiono isso. Uma das razões que me fizeram sofrer quando me descobri ciumenta é que ainda era suficientemente consciente para me dar conta de que estava em contradição com meus princípios. Eu me dava conta, meu companheiro também, ele era o primeiro a me dizer: “Como é que você, com a vida que leva, pode ser ciumenta assim?”. Descobri nessa época que o ciúme é um dos sentimentos que controlamos mais dificilmente. Por isso que digo que é primitivo. Por vezes temos a impressão de sermos levados ao nível do animal que demarca seu território.
Você acredita que possa haver um ciúme … e nocivo?
O ciúme é uma pimenta sexual que pode agir de diferentes formas. Há, por exemplo, o caso desses amigos libertinos (James Joyce e Georges Bataille), que têm prazer em ver suas mulheres com outros homens. Mas pode ser também o desejo de vencer o desafio de ver a tensão daquela pessoa que você ama atraída por outro, e nesse momento você tem vontade de reagir e de atrair novamente a atenção dela. Mas se isso toma uma forma patológica, aí é algo terrível. É um dos sentimentos mais horríveis que se pode experimentar.
Foi o seu caso?
Eu ainda tinha a capacidade de falar com Jacques, de refletir sobre, fiz análise, o que ajudou me livrar disso. Mas se você é realmente prisioneiro desse sentimento, acaba nas páginas policias dos jornais. Mata-se por ciúme.
Você prega uma democratização da sexualidade para que cada um posso revelar sua verdadeira natureza sem sofrer socialmente. Que tipo de democratização seria essa e em que estágio ela está hoje?
Há uma imagem do libertino, herdeira do Marquês de Sade, de pertencer a uma elite. Os personagens de Sade são aristocratas que se isolam do resto do mundo e que submetem aos seus desejos outras pessoas, que se tornam objetos. Ainda hoje há a ideia de que um certo modo de vida sexual seria reservada a um tipo de elite ao mesmo tempo sexual e intelectual, e que essa elite distinta do resto da população humana pode se permitir transgressões proibidas aos outros. Não aprecio essa ideia de uma elite para a qual seria reservada a possibilidade de transgredir certos tabus. Eu me dei conta disso depois da publicação de A Vida Sexual de Catherine M., porque, curiosamente, vi libertinos reagirem de forma negativa ao meu livro. Era curioso, porque, afinal, eu fazia parte do círculo deles. Mas compreendi que de uma certa forma eu traía um pouco essa confraria de libertinos. Eu não considerava a transgressão de tabus como um valor em si, enquanto que para essas pessoas se trata de um valor. Eu milito para que todo o mundo possa dispor dessa liberdade sexual, sem pertencer a nenhuma elite ou ter essa satisfação narcísea de dizer: “Eu fui capaz de transgredir um tabu”.
E os movimentos feministas hoje?
Eu me sinto mais à vontade com jovens de hoje que tentam reinventar o feminismo, se apropriar de formas de expressão que permitem às mulheres exprimir suas visões da sexualidade, do que com mulheres que nos anos 1970 pensavam que todos os esquemas sexuais eram construídos pelos homens e que era necessário rejeitar isso em bloco. Eu me sinto mais próxima das mulheres que não estão nesse feminismo rígido, mas que estão no estado no qual as mulheres se apropriam das “ferramentas simbólicas”. Elas filmam, fotografam, escrevem e falam de sua própria visão da sexualidade, em vez de rejeitar tudo.
A literatura libertina não é algo novo. Já no século 18 imprimiu sua marca, tendo o Marquês de Sade como principal expoente. A que você credita o enorme sucesso, nesse início de século 21, de seu livro A Vida Sexual…?
Penso que os costumes na sociedade evoluíram bastante. Mesmo se ainda há associações que pedem a censura de obras licenciosas ou que condenam certos comportamentos, de uma forma geral o conjunto da população em nossas sociedades é muito mais aberto. Notei com o sucesso de A Vida Sexual… que mesmo se as pessoas não partilham do modo de vida e da filosofia libertária, estão prontas a aceitar que outros o façam. Há essa mínima tolerância. Muitas pessoas me disseram: “Jamais ousaria fazer o que você fez, mas compreendo muito bem que seja a sua escolha”. Isso prova que há uma abertura de espírito, uma abertura aos outros bem maior do que havia antes. Além disso, eu tinha 20 anos em 1968, pertenço a uma geração que acreditou nessa utopia da liberação sexual, que a sociedade evoluiria de uma forma em que os corpos seriam trocados facilmente. Compreendemos que não era tão simples assim. Mas havia um pouco esse sonho.
Existe para o ser humano prazer fora da obscenidade? A pergunta é uma formulação sua.
(Silêncio). Acho que sim. Para mim, a obscenidade é um força erótica. Falar durante o ato sexual, falar palavras obscenas, olhar imagens obscenas, imaginar situações obscenas, são recursos que excitam muito minha libido. Mas também me ocorre ter muito prazer sem passar por essas representações obscenas. E todo o mundo não tem o espírito feito da mesma forma. Penso que quando há uma relação de desejo muito forte, pode-se abster de representações obscenas desse tipo. Por onde passa o desejo é algo muito sutil. Meus dois livros interrogam sobre isso, mas de forma alguma esgotei o tema. Veja os fetichistas, um fetichista do pé, do sapato, como se vê em Le Journal d’une femme de chambre (de Octave Mirbeau, 1900). Um par de sapatos, para você, para o comum dos mortais, não é uma imagem obscena. Talvez que essa imagem de sapatos vá suscitar em um fetichistas um desejo louco pela mulher que calçá-los, algo que para você é algo misterioso. Os caminhos do desejo, de uma pessoa a outra, são tão inapreensíveis, tão difíceis de entender, não posso dar uma resposta categórica a essa questão.

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