O italiano Tanino Liberatore vai participar do próximo Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), que será realizado entre 06 e 11 de outubro, em Belo Horizonte (estarei lá). O encontro trará ainda outros artistas. Da Espanha, Juan Díaz Canales. Dos Estados Unidos, Ben Templesmith. Do Canadá, Guy Delisle. Da Alemanha, Jens Harder. A coordenação do FIQ confirmou outros nomes: o desenhista chinês Benjamin, o editor de quadrinhos chineses na França, Patrick Abry, e Eddie Berganza. Brasileiros que atuam no exterior - como Gabriel Bá, Fábio Moon e Ivan Reis - também irão participar do FIQ, que é realizado a cada dois anos. O homenageado desta sexta edição será o brasileiro Renato Canini. Ele criou personagens como Kactus Kid e foi o mais conhecido desenhista brasileiro de Zé Carioca. Nosso foco hoje é para o trabalho de Liberatore.
A década era de 80. O italiano Paolo Eleuteri Serpieri mostrou um furacão sexual perdido em mundo pós-apocalítico (Druuna), já o britânico Alan Moore relatou estupro (Watchmen) e aleijou uma personagem (A Piada Mortal). Outro inglês, Grant Morrison insinuou relação homossexual (Asilo Arkhan), mas o hardcore maior ficou com Ranxerox que trazia as aventuras violentas e cheias de sacanagem de um andróide punk e sua companheira adolescente Lubna, em um futuro devastado. Stefano Tamburini e Tanino Liberatore anteciparam o gênero de violência extremada nos quadrinhos dos anos 80 e que predominaria no cinema dos anos 90 influenciando cineastas como Quentin Tarantino (Pulp Fiction) e Oliver Stone (Assassinos por Natureza). Esses italianos levaram às últimas conseqüências sintomas de uma sociedade doente e se revelou profético quando observamos os massacres que ocorrem com freqüência nos Estados Unidos. Há uma profunda crítica a valores sociais e morais nos excessos de Ranxerox. Isso está bem mais claro, hoje, como bem observou o estudioso de quadrinhos, Gonçalo Junior.
PARCERIA
O roteirista Tamburini e o desenhista Liberatore iniciaram parceria em 1977 ao editar uma revista underground Cannibale. Foi aí que eles lançaram um andróide chamado Rank Xerox, o mesmo nome da gigantesca corporação cujas máquinas fotocopiadoras eram uma obsessão de Tamburini. Este era responsável não apenas pelos roteiros, mas também pelo desenho, que antes de ser arte-finalizado era retocado pelos desenhistas mais competentes da revista. As histórias eram em preto & branco, curtas - raramente ultrapassavam as quatro páginas. A empresa homônima descobriu o personagem, e não gostou de ser sua marca sendo associada a um robô pedófilo e boçal. Sob ameaça de processo, Tamburini efetuou uma ligeira modificação - Rank Xerox virou Ranxerox.
Com o término da revista Cannibale, o grupo se envolveu numa outra publicação ainda mais radical: Frigidaire. Ranx continuava sujo, tosco, podre e doentio, e as histórias tornaram-se mais longas. Tamburini largou a arte, encarregando esta função a Liberatore. O desenhista, por sua vez, deixou o preto & branco e inseriu cores nas ilustrações da série. Com traço caricato e realista, Liberatore impregnou o universo do anti-herói com uma identidade visual inconfundível.
Quem desejar folhear as páginas onde foram publicadas o anti-herói vai encontrar sequências ininterruptas de ultraviolência, sexo bizarro e perversidades em geral. O cenário é uma Roma futurista e apocalíptica. Decadência, sordidez, indiferença é o que o leitor vai encontrar no relacionamento humano. E em meio a este verdadeiro caos, dois personagens vivenciam aventuras completamente anárquicas e amorais: Ranxerox, o violento brutamontes que batiza a série, e sua namoradinha Lubna, uma junkie de apenas 12 anos com cara de criança e jeito de dominatrix. Quem já leu o romance “Crash” (mais tarde levado para o cinema por Cronenberg) sabe dessas narrativas trágicas, bizarras de relações entre morte, acidentes de carro, mutilações e prazer sexual. Tudo com muito sarcasmo. As aventuras do pós-punk fizeram sucesso nas revistas como a norte-americana Heavy Metal, a espanhola El Víbora, a francesa L'Echo des Savanes e a brasileira Animal.
Tamburini faleceu, vítima de overdose, aos 31 anos de idade. Liberatore sobreviveu aos caos. Nascido na Itália, estudou Artes Plásticas e mudou-se para Roma, onde cursou Arquitetura. Nos anos 80, publicou trabalhos nas revistas americanas, européias e japonesas. Seus alcançou setores como a televisão, o cinema e até mesmo a música: são de sua autoria a capa do disco de "The Man from Utopia", de Frank Zappa; os figurinos do filme "Asterix e Obelix - Missão Cleópatra", trabalho pelo qual ganhou um César; e inúmeras vinhetas televisivas para emissoras do mundo todo. Hoje em dia, mora na França.
FRANKENSTEIN BIÔNICO
O quinto capítulo (Contemporâneos e sucessos – uma escola de sacanagens) o pesquisador Gonçalo Júnios no livro Tentação à Italiana, um perfil dos mestres do erotismo contemporâneo (Ópera Graphica Editora, 2005) aborda Liberatore, o sexo e a paródia do caos, do encontro entre Tamburine e Liberatore, da anatomia dos personagens, parceiros, amoral, tudo ricamente ilustrado. Escreveu o pesquisador:
“O personagem era uma espécie de Frankenstein biônico, pós-apocalipse, que radicalizava essa postura para mandar seu recado num mundo caótico e sem saída, onde a violência se tornou umas ferramenta usual do dia-a-dia – até mesmo nas relações amorosas. Sua parceria, por quem era apaixonado, chamava-se Lubna, uma garotinha pré-adolescente viciada em drogas, de visual punk, que se prostituía para comprar alucinógenos”
“Entre as características que a dupla procurou destacar nas histórias de Ranxerox estavam a petulância, a mal-criação e a depravação de uma sociedade moralmente corrompida e corrupta. O personagem principal e Lubna, aliás, formavam um casal suigeneris que lembraria bem a dupla sanguinária de ´Assassinos por Natureza´, filme de Oliver Stone. Assim como no cinema, Lubna estava longe de ser uma garotinha frágil, como parecia”.
“O universo da dupla era extremamente violento, com uma realidade distorcida a partir do comportamento da juventude em sua época, influenciado principalmente pelo movimento punk, que surgiu nos EUA no final da década de 1960 e migrara para a Inglaterra em meados dos anos de 1970. Além das idéias inconformistas e até fatalistas, o visual punk de Ranxerox funcionava também como uma forma de protestar pela manipulação do vestuário e até da flagelação do próprio corpo. O personagem se tornou uma das mais controvertidas invenções dos quadrinhos. Chegou a ser descrito como o primeiro anti-herói pós-punk, um humanóide brutamontes que prenunciou a era do caos urbano quer se seguiu nos vintes anos seguintes. Polêmico pela violência exagerada e extremamente original em sua abordagem temática, transformou-se numa das referências de sua época”.
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