No século XI as modalidades de administração do sacramento de penitência elaboraram-se lentamente. Os padres deviam ajudar os pecadores a purgar-se inteiramente, devendo, para tanto, submetê-los à tortura, forçá-los à confissão. No limiar do segundo milênio, na época em que o bispo Burchard de Worms trabalhava, um acontecimento de importância considerável produziu-se na Europa: a modificação das relações entre masculino e feminino. “A Igreja decidiu colocar a sexualidade sob seu estrito controle. Estava, então, dominada pelo espírito monástico. A maior parte de seus dirigentes, e os mais empreendedores, eram ex-monges. Os monges acreditavam-se anjos. Como estes, pretendiam não ter sexo e vangloriavam-se de sua virgindade, professando o horror à mácula sexual. Por conseguinte, a Igreja dividiu os homens em dois grupos”.
“Aos servidores de Deus, proíbe servir-se de seu sexo; permite-o aos outros nas condições draconianas que decretou. Restavam as mulheres, o perigo, já que tudo giravam em torno delas. A Igreja decidiu subjuga-las. Com esse fim, definiu claramente os pecados de que as mulheres, por sua constituição, tornavam-se culpadas. No momento em que Burchard compunha a listas dessas faltas específicas, a autoridade eclesiástica acentuava seu esforço para reger a instituição matrimonial. Impor uma moral do casamento, dirigir a consciência das mulheres: mesmo projeto, mesmo combate. Ele foi longo. Acabou por transferir aos padres o poder dos pais de entregar a mão de sua filha a um genro, e por interpor um confessor entre o marido e sua esposa”, escreveu Georges Duboy no terceiro volume da trilogia Damas do século XII – “Eva e os Padres”.
É pelo casamento que a mulher desse tempo tem acesso à existência social. Antes, ela não é nada: “mesquinha”, esse termo que nos ficou designava a moça no século XII. No ritual do casamento, em seus gestos, em suas fórmulas, exprimiam-se claramente as obrigações da mulher. O casamento, garantia da ordem social, subordina a mulher ao robusto poder masculino.
O texto da Bíblia, no começo do livro do Gêneses, vem reforçar a convicção de que a mulher, auxiliar, foi colocada junto ao homem apenas para ser “conhecida”, tornar-se dama e sobretudo mãe, um receptáculo, uma matriz preparada para a germinação da semente masculina, de que não tem nenhuma outra função que não a de ser fecundada, de que sem esse papel o mundo teria muito facilmente passado sem ela. É pensamento da época: o homem é a imagem de Deus, a mulher não é mais do que o simulacro. Assim, mais próximo de Deus, o homem é mais perfeito; detém o poder sobre a mulher assim como sobre todas as outras criaturas; sua sabedoria confere-lhe mais dignidade; é também mais terno, pelo amor que tem por aquela que ele tem a missão de dirigir.
E é no século XII que a expansão das práticas da penitência interna torna mais urgente a pergunta: o que é o pecado? Onde ele está? Na mulher mais que no homem, respondem os eruditos: lede a Bíblia. Deus criou o homem à sua imagem, a mulher, de uma parte mínima do corpo do homem, como uma impressão sua ou, antes, um reflexo. Apenas o homem está em situação de agir. A mulher, passiva, tem os movimentos comandados pelos de seu companheiro. Essa é a ordem, primordial. Essas certezas são apoiadas na leitura do texto bíblico. Elas dão sustentação à ação dos padres para afastar do mal a sociedade leiga.
Como são os homens que dominam e agem, os reformadores preocupam-se antes de mais nada em ajudá-los, considerando-os, de agora em diante, como estando claramente divididos em duas categorias, a dos religiosos, assexuados, e a dos sexuados. Para eles, na origem de toda transgressão da lei divina encontra-se o sexo. O pecado capital é o da carne.
A grande maioria das religiões, sempre preocupada com a elevação da alma, nunca soube muito bem o que fazer com o corpo. A preocupação do sexo é a manutenção da vida carnal. Nada a ver com a sublimação proposta pela religião, o sexo valoriza o instante ao invés da eternidade, o físico ao invés do espiritual, o imperfeito ao invés do perfeito. As sociedades matriarcais sempre encaram melhor essa contradição do sexo. A Terra, afinal, é útero (dela nasce a vida) e sepulcro (a ela retornam os mortos). Daí o sexo ser interdito para várias religiões e a arte erótica sempre ter sido razão de polêmica. Além de tentar provocar excitação sexual, a arte erótica tenta reproduzir, em imagens, os objetos do desejo humano. Ou reproduzir, meramente, o ato sexual. A religião confina a sexualidade à zona do secreto, criando a culpabilidade, a proibição. A essa zona onde a proibição dá ao ato proibido uma claridade opaca, ao mesmo tempo “sinistra e divina”, claridade lúgubre que é a da “obscenidade” e do “crime”, e também a da religião.
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