25 fevereiro 2008

A Medicina aliou-se à Igreja (5)

A historiadora Ana Paula Vosne Martins em seu livro “Visões do Feminino – a medicina da mulher nos séculos XIX e XX” (Editora Fiocruz) mostra como o estudo do corpo feminino pelo saber médico colaborou para o aprisionamento da mulher ao determinar seu papel na sociedade pelas características corporais, reprodutivas e sexuais. Para ela, a mulher do século XXI continua prisioneira do corpo, submetendo-se a intervenções médicas como plásticas e silicones, seguindo à risca as cartilhas da saúde e da beleza. Trata-se de uma versão mais moderna de controle da autonomia feminina.

O conhecimento científico sobre as diferenças humanas de gênero e raça, que começou a ser elaborado em meados do século XVIII e durante todo o século XIX, estabeleceu como verdade que a constituição física dos corpos seria uma espécie de base indelével que definia o destino ou a função dos indivíduos na sociedade. Os homens de ciência partiram de um modelo físico bem determinado – o homem branco, tido como mais inteligente, forte, capaz de exercer o poder, criar obras artísticas e produzir o conhecimento. Seu corpo passou a ser a medida, enquanto todos os outros corpos se tornaram objeto de estudo científico que precisava conhecer aquelas diferenças de gênero e de raça, submetê-las a um conjunto de procedimentos científicos e estabelecer o seu lugar, tanto na classificação da espécie humana, quanto na classificação social.

Anatomistas, fisiologistas e médicos afirmaram que o corpo feminino era determinante na vida das mulheres. Se nos homens predominava o alto corporal, o cérebro como sede da razão e o auto controle, nas mulheres predominava o baixo corporal, o útero, a capacidade reprodutiva, a sexualidade, as paixões e todo o potencial ameaçador e desestabilizador que os homens da ciência creditavam a elas. Segundo uma tradição mais antiga, tanto pagã quanto cristã, dizer que as mulheres eram predominantemente seus corpos podia significar que a mulher era uma ameaça, uma fonte de poluição associada ao mal e à morte. Já de acordo com uma concepção naturalista e romântica, o significado da mulher-corpo muda, ou seja, o corpo feminino é fonte de vida, berço e não túmulo.

Essas representações sobre o feminino (produzidas tanto pela ciência e medicina quanto pelas artes e literatura) é que elas são intercambiáveis. O mesmo autor que demonstra temor pelo corpo feminino pode enaltecer as qualidades maternas deste corpo. Assim, a representação da mulher-corpo não foi única ou homogênea. Ela tem diferentes significados ao longo do século XIX, dos mais negativos e depreciativos aos mais poéticos e enaltecedores.

Como a ciência tem o poder de nominar as coisas, de dizer a verdade sobre elas, era um poder tão grande quanto o da religião. Para os termos do século XIX, isso significava estabelecer não só identidades, mas criar normas, fixar os objetos do conhecimento nos limites deste esquadro que é a norma. Quando os homens da ciência e da medicina enunciaram que a mulher era tão diferente do homem que nem pareciam pertencer à mesma espécie, isso teve um impacto na vida das mulheres.

Naqueles tempos, como no nosso, as diferenças não convivem com a igualdade; portanto, as mulheres eram consideradas naturalmente indivíduos de segunda categoria, mais frágeis física e emocionalmente, mais suscetíveis aos ditames do corpo do que da razão. Tais idéias tinham uma força enorme, impedindo que as mulheres pudessem exercer direitos políticos, estudar, expressar livremente suas idéias, dizer não a pais ou maridos prepotentes, até mesmo praticar exercícios físicos como andar de bicicleta, por exemplo.

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