26 fevereiro 2008

A Medicina aliou-se à Igreja (6, final)

Ao estudar o processo de gravidez e do parto, a obstetrícia não produziu um conhecimento técnico e neutro. Este saber contribuiu para uma definição determinista do feminino ao afirmar que a Natureza havia criado as mulheres para dar continuidade à espécie humana, dotando-as de órgãos específicos para tal finalidade, bem como de uma contribuição física adequada para a maternidade. Portanto, as mulheres deviam natural e moralmente ser preparadas desde cedo para exercer esta função interna.

Ao estudar o corpo feminino e sua capacidade reprodutiva, a obstetrícia contribuiu para limitar a definição do feminino à maternidade, afirmando que qualquer desejo por algo além desta norma do corpo era um sinal de desvio, caminho para patologia. Não é coincidência que só no século XIX a representação da mãe devotada passasse a estar tão presente no imaginário, seja na religião, nas artes, na literatura ou na escrita médico-científica. Mas foi a ginecologia que contribuiu mais decisivamente para este aprisionamento da mulher ao corpo.

A grande questão da ginecologia não era a capacidade reprodutiva, mas entender o que era a mulher. Questão ideológica. Os médicos voltaram-se para o interior do corpo feminino, mais especificamente para o baixo ventre, procurando nos órgãos sexuais as respostas para a distinção feminina. Útero e ovários passaram a ser uma metonímia da mulher: ou elas se enquadravam na norma da maternidade ou criam no terreno pantanoso onde proliferam as patologias de etiologia sexual.

Ao estudar a produção cultural masculina sobre o feminino no século XIX e começo do século XX, Ana Paula percebeu o quanto a diferença feminina constituía um problema para aqueles homens cultos. Primeiro, o mistério – criaturas misteriosas despertam fascínio, mas também medo. Esta cura de mistério, criada pelo desejo de conhecer e de possuir ao mesmo tempo, é um dos elementos fundamentais para se entender a imagem ambígua da mulher que oscila entre mãe nutridora e amorosa e a mulher fatal. Essa ambigüidade não se restringe às páginas dos livros e jornais ou obras artísticas, mas extravasa para a vida social, participando de uma construção social que inferioriza e as exclui as mulheres, pois as imagens da normalidade e da anormalidade são como o positivo e o negativo de uma fotografia. Adorada ou temida, enaltecida ou execrada, a mulher permanecia o outro, por excelência, da cultura ocidental.

O controle social continua a ser a principal semelhança entre a mulher – corpo do século XIX e a mulher corpo de hoje. As do passado estavam presas a vertas “verdades” sobre seus corpos, como a fragilidade e o perigo para a sua saúde física, e, principalmente, mental caso ousassem romper com estas verdades. Hoje o controle sobre as mulheres está embalado no pacote da saúde, da beleza, da juventude, do dinamismo, enfim, do bem-estar fotogênico que consumimos todos os dias. A indústria da beleza, com toda a sua diversidade, também afeta os homens, mas as mulheres estão na sua origem e continuam a ser o alvo privilegiado.

Hoje, não basta ser uma boa profissional, ser competente no que faz, ter seu espaço e ser respeitada pelo que é. Se você não for tudo isso e mais uma milhão de outras coisas relacionadas ao que você aparenta, então não será percebida e, na nossa cultura visual, isso pode ser um problema, uma fonte de frustração e de amargura. Enquanto as mulheres do século XIX estavam presas aos limites do corpo (limite estes criados pelos homens de ciência e de medicina), as mulheres dos séculos XX e XXI estão presas à imagem de um corpo jovem, magro, plástico, bem vestido, pronto para a Câmera que aprisiona.

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