06 julho 2009

O mundo pelos olhos das crianças

Desde sempre, as crianças se destacaram nas histórias em quadrinhos. Mas o termômetro do sucesso desses personagens foi indicado pelo público leitor. O alemão Wilhelm Busch criou, em 1865, dois garotos travessos, Juca e Chico. Mas a primeira criança que deu impulso à nova arte foi sem dúvida Yellow Kid, o Garoto Amarelo, criado em 1895 por Richard Outcault. Inspirados nos personagens Juca e Chico, Rudolph Dirks começou a publicar, em 1897, as trapalhadas dos Sobrinhos do Capitão. Em 1912, Richard Outcault lançou Chiquinho (Buster Brown). Em 1905, Wilson McCay fez surgir O Pequeno Nemo com desenhos surrealistas e oníricos.

Se nos EUA o apoio ideal da HQ foi no jornal diário para adultos, na França quem desempenhou o mesmo papel foi a revista infantil. E no Brasil, as revistas de humor. Em 1924 Harold Gray cria uma garotinha de cabelos encaracolados e olhos vazados: Aninha, a Pequena Órfã. Em 1929 Hergé criou o adolescente Tintin e seu cão Milu em viagens pelo mundo. 1931 surgiu o trio Reco Reco, Bolão e Azeitona, de Luiz Sá na revista Tico Tico. 1943 Marge lançou Luluzinha e Bolinha. 1950, Charles Schulz, inspirado, criou o incompreendido e desprezado Charlie Brown em seu Peanuts. 1951 nasceu Dennis, o Pimentinha de Ketchan. 1960 Ziraldo lançou a revista Pererê, o melhor exemplo de brasilidade que temos nos quadrinhos. Mauricio de Sousa publicou as tiras de Bidu, Cebolinha, O Astronauta. Em 1964 inspirada em sua filha ele criou Mônica, e o argentino Quino deu vida a terrível e questionadora Mafalda. Em 1984 o irreverente Menino Maluquinho, de Ziraldo, sai das páginas do livro para os quadrinhos.
Existem outras crianças nos quadrinhos, muitas outras. Mas, em grande parte, colocadas de modo idealizado, sem problemas. Em dezembro de 1996 estreou nas páginas do jornal A Tarde a tira diária Fala Menino!, de Luís Augusto Gouveia. Trata-se da primeira série de quadrinhos que enfoca o universo infantil chamando a atenção para toda a diversidade que neste existe, onde há lugar para alegria, fantasias e sonhos, mas também para momentos de dor, tristezas, perdas e diferenças... deficiências. São histórias de crianças, das quais algumas são portadoras de necessidade especial, que vivem as mais divertidas aventuras em casa, na rua ou mesmo na escola. Tudo com muita reflexão. Onde a deficiência é apresentada não como algo desejado, mas que é superada. Assim surgiu Lucas e sua turminha. Lucas é mudo, porque não sabe falar. E, entre muitos, ele é amigo da surda Mirela, do cego Rafael e do autista Mateus.
Tratar, nos quadrinhos, de crianças “deficientes”, que o autor prefere chamar de “portadoras de necessidades especiais” requer muita sensibilidade, habilidade e criatividade para não cair no tom piegas. Mas as aventuras desses pequenos que pintam e bordam a todo momento e fazem barulho como todas as crianças são resultados do convívio de Luís Augusto com centenas de crianças, entre elas, meninas e meninos autistas e portadoras de vários tipos de deficiências. Com este contato direto, e muitas pesquisas, ele percebeu que as crianças convivem, muito bem, com as diferenças e as dificuldades. E viu mais: elas sabem superar limites (seus e dos outros) sem culpas ou piedade. Essa turminha sapeca convive muito bem com a diferença.
O que Luís Augusto está fazendo é mostrar a criança primeiro como cidadã, seus direitos, valores, o respeito, carinho e amizade, tudo com muito senso de humor. Nas entrelinhas diz muito mais: a mudez de Lucas pode ser uma metáfora que representa a mudez social da criança. Quantas vezes os adultos não têm paciência de ouvir o que os pequenos tem a dizer. Se no início escrevi que Fala Menino! trazem histórias sobre crianças deficientes, estava errado. São histórias sobre crianças. Crianças que superam, seja um simples problema de matemática, ou mesmo uma surdez de nascença. Os limites de cada um entram no contexto para realçar a capacidade do homem de ultrapassar obstáculos para ser feliz. Assim, o limite traz, sempre, potenciais a serem desenvolvidos. São histórias sobre NÓS!.
E o próprio autor superou todos os obstáculos em publicar seus desenhos, enfrentando os quadrinhos estrangeiros que invadem quase todos os nossos espaços, superou a falta de visão de muitos editores que não acreditam no tema abordado, superou a tudo e a todos porque acreditou no que fazia. E foi com os olhos de criança que conseguiu enxergar esperanças nesse mundo de contrastes e incertezas. Com os olhos brilhando de verdades que conseguiu atingir crianças e adultos, redescobrindo a vida e o mundo. É preciso espalhar essas sementes com urgência para todos. Desde as crianças até aos mais idosos.
Suas histórias são exemplo de dignidade humana. Exemplo de vida que merece ser divulgado a todos, professore, médicos, engenheiros, psicólogos, donas de casa, pais e filhos, todos formadores e multiplicadores de opiniões. Com traços firmes, personagens bem delineados e roteiros precisos e profundos, o professor, arquiteto, desenhista e escritor Luís Augusto espalhou seu aprendizado na Bahia e já atingiu muitos outros estados. É preciso observar o amadurecimento e a evolução de seu trabalho. Desde a primeira tira publicada durante o ano de 1997 o que se nota é o crescente equilíbrio entre roteiro e imagem, e o constante desenvolvimento da personalidade das crianças. Esse eterno aprendiz sabe das coisas, sabe da vida, e passa tudo isso em seus quadrinhos. Nós agradecemos por essas preciosidades diárias que são publicadas no jornal e que agora estão reunidas em livro. Vale a pena conferir.
Do convívio diário com crianças de escolas particulares de Salvador e, principalmente de seu trabalho junto às meninas e meninos autistas e/ou portadores de necessidades especiais, que surgiu a turminha do Fala Menino!. Lá, Luis Augusto percebeu que as crianças convivem muito bem com as diferenças e dificuldades e, o que é mais importante, sabem superar limites.
O autor consegue despertar no leitor o sentido de cidadania, fazendo-o refletir em como as crianças podem ser atuantes sem perder a infância. Mas ao escolher esse foco como tema, o assunto ainda rende preconceitos. Crianças com necessidades especiais são capazes de aprender e desenvolver novas habilidades da mesma maneira que qualquer outra.

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