14 abril 2009

É preciso olhar com atenção (2)

O mundo sensorial é ilusório. Esse mundo das paixões e desejos é o mundo que vemos e percebemos. Real seria o mundo das propriedades matemáticas que só podem ser descobertas pelo intelecto. É o que pensava Lévi-Strauss. Charles de Bovelles afirmou que há três olhos – o olho angélico, o olho humano e o olho animal, a saber, o intelectual, o racional e o sensível. Os dois mais potentes estão admitidos à contemplação de Deus, o sol natural de cada um deles. Mas o olhar angélico percebe Deus na luz, enquanto o olhar humano o percebe na sombra.


Há os olhos do corpo e os olhos do espírito, segundo Bovelles. Os primeiros - a que chama de olhos mundanos – são esferas perfeitas que “não podem ver toda a superfície da esfera”, excitados pela luz e pela cor apenas “em metade de sua esfera, aquela voltada para o mundo”, mas “cegos por natureza em sua outra metade, aquela presa no interior da cabeça”. A Natureza não lhe deu a visão interior. O homem ganhou o primeiro olhar. Deve conquistar o segundo através da sabedoria ou ciência de si mesmo.

O olhar também foi considerado perigoso. Basta conhecer a história das filhas e a mulher de Ló, transformadas em estátuas de sal. Ou Orfeu perdendo Eurídice. Narciso perdendo-se de si mesmo. E Édipo cegando-se para ver o que, vidente, não podia enxergar. Ou mesmo Perseu defendendo-se da Medusa forçando-a a olhar-se. E os índios, recusando espelhos, pois sabem que a imagem refletida é sua própria alma que a perderão se nelas e nele depositarem o olhar. Olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si.
O uso das palavras que expressam o olhar é bem diversificado. O povo diz “Olho gordo” quando há sinais de ganância. Se o desejo é voraz o olho é comprido. Olho de sapo é olho parado, olho de peixe morto. Olho de lince é agudo, terno é olho de pomba, infiel ou suspeito é olho de gato, tímido é olho de coelho, cruel é olho de cobra, sensual é olho de macaca. Assim, a expressão do olhar busca e acha suas metáforas no ser vivo. O olhar é muito mais do que função fisiológica, é uma linguagem forte, um universo carregado de sentido. O universo do olhar é vasto e misterioso.

O homem de hoje é um ser predominantemente visual. A maioria das informações que ele recebe lhe vem por imagens. O mundo se dá ao olho humano (segundo o discurso de Epicuro e de Lucrécio), porque a natureza desenvolve um movimento constante, veloz, desprendendo da superfície dos seres os simulacros, figuras que duplicam sutilmente a forma superficial das coisas. Assim os simulacros vêm ao encontro dos nossos olhos, trazidos que são pelos raios da luz solar, estelar ou lunar. Os olhos recebem passivamente, com prazer ou desprazer, contanto que estejam abertos. O efeito desse encontro chama-ser conhecimento.

Para conhecer basta abrir bem os olhos em um espaço iluminado e acolher os ícones do mundo. Assim, conhecer é estar imerso em um oceano de partículas cintilantes e nele engolfar-se sensualmente. Assim, segundo os filósofos antigos, conhecer é ser invadido e habitado pelas imagens errantes de um cosmos luminosos. Para eles a vida é um percurso de luz e morrer é perder a luz. Assim, viver é olhar essa luz, por breve mas belo tempo. Mas o olhar que vê o nascer para a luz contempla também o mergulhar na treva.

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