26 fevereiro 2009

Reflexão em tempo de cólera

O ser humano bebe e fuma demais, consome sem critério, dirige rápido demais, assiste muita tevê e lê pouco, dorme tarde e acorda cansado e quase não reza. Multiplica seus bens, mas reduz seus valores. Fala demais, odeia frequentemente e raramente ama. Aprendeu a fazer tudo apressadamente, mas não aprendeu a esperar. Participa de várias reuniões, mas as relações são vazias. Se alimenta de fast-food e de digestão lenta. Armazena informações no computador, mas se comunica menos.

O ser humano faz muitas coisas maiores, mas pouquíssimas melhores. Foi à Lua, mas tem dificuldade de encontrar com o vizinho. Conquistou o espaço, mas não o próprio. Aprendeu a sobreviver, mas não a viver. Adicionou amor à sua vida e não vida ao seu amor. Luta para limpar o ar, mas polui a alma. Planeja mais e realiza menos. Torna-se homem grande, mas de caráter pequeno.
O ser humano passa mais tempo no computador enviando e-mail, mas não tem tempo para um diálogo ou um simples abraço amigo. O avanço da ciência e tecnologia retrocedeu a busca de valores como ética, justiça, honestidade e solidariedade.
O encantamento com o corpo está forjando a outra linguagem da identidade. São as chamadas bio-identidades. A cultura hoje em dia não quer que você tenha uma forma definitiva. É exigido que você se mude o tempo todo, que você se mude enquanto consumidor de tecnologia médica e consumidor de modelos identitários. Quando você tem qualquer coisa que você acha que é algo que lhe torna fixo eles gritam “não crie hábitos”, “seja transgressor”, “se reinaugure todo o dia”, “se mude sempre”. Ninguém agüenta essa carga.
Na era de poucos valores, moral descartável, pílulas mágicas, acesso rápido e lenta reflexão, de música pouco conceitual, de tevê fútil e livro inútil, de nada que faz pensar, apenas transar, existem ainda aqueles humanos (poucos) que sabe que a vida não é tudo que se quer, mas amar tudo que se tem.
A vida é feita de jogo, de encenação, de astúcia, de ousadia e, principalmente, dos 'insignificantes' acontecimentos de cada dia. É preciso uma religação entre o indivíduo contemporâneo e seus ambientes social e natural e o estar-junto. Assim o comunicar é tocar, falar, fundir-se com o outro, pôr-se em relação, festejar, soltar-se, entregar-se a um vitalismo estruturador do social. Comunicar é viver na marcha de cada dia a pluralidade de pessoas de que cada um é constituído.
É preciso ver nas margens o essencial do que faz sociedade e descobrir a cultura brasileira — com todas as suas misturas, barroca, mestiça, e contradições. É preciso se despir dos preconceitos, das tradições e hierarquias para descobrir o que se faz e o que se pensa nessa outra escala do social esquecida, invisível. A visibilidade hoje é puramente estrutural.
Comunicar é passar de identificação em identificação, fora da noção de identidade imutável, na busca do prazer, da sinergia, da sintonia, da comunhão, da conjunção social, do estar-junto que permite viver intensamente o “fantástico do cotidiano”.
É preciso fazer parte daquilo de que fala. Deseja mostrar (não demonstrar), descrever (não prescrever), valorizar (não julgar), compreender (não necessariamente explicar), comunicar (não imperativamente informar), conectar-se.
É preciso estabelecer um dever-ser. Situação de religação que favorece as conexões, correspondências, interfaces, cruzamentos, conexidade tátil. Correspondências, conexão, religação, conexidade tátil: comunicação.
Abrace um amigo (a) ao lado e ouça o que ele (a) tem a dizer. Falar é bom, mas ouvir é bem melhor. Aperte a mão do vizinho com vontade e lhe deseje um bom dia de coração. Leia mais, olhe em volta e reflita os valores. Haja com razão e lute por uma sociedade mais fraterna, honesta, justa e pacífica. Faça a sua parte. Passe mais tempo com a pessoa que ama e beije bastante. Amar cura tudo.

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