05 março 2008

Giordano Bruno e seus furores (3)

O filósofo Giordano Bruno, em pleno Renascimento, teve uma maneira de olhar o olhar, no encontro poético entre os olhos (falando da razão) e o coração (em nome das paixões). Para ele, “a vista é o mais espiritual de todos os sentidos”. E dedicou um livro aos olhos: Heróicos Furores. Na obra ele escreve o diálogo – o enbate – entre os olhos e o coração. O diálogo começa com uma acusação e um lamento do coração. Ele se queixa do fogo que o consome e acusa os olhos de serem “causa desse cruel incêndio” que nem toda a água do oceano bastaria para apagar. É que a primeira chama veio dos olhos, porque a razão excita o desejo: “Perceber, ver, conhecer, eis, em verdade, o que o desejo acende. É, pois, graças aos olhos que o coração é incendiado”.

Por sua vez, os olhos acusam o coração de ser o princípio de todas as lágrimas; na verdade, o fogo e a dor do coração fazem brotar as lágrimas dos olhos: se os olhos incendeiam o coração, é por causa do coração que os olhos são incendiados em lágrimas. “Copiosas lágrimas que, se espalhadas, inundariam o universo”.

Os olhos perguntam: se toda matéria, convertida em jogo móvel e ligeiro, eleva-se às alturas do céu, “por que você, que um tão grande jogo de amor atormenta, não é levado, rápido como o vento, de um só ela até o sol?”. O coração responde: “Louco é aquele que, fora das aparências, nada conhece e que, pela razão, recusa-se a acreditar: o fogo que está em mim não pode alçar vôo, nem pode ver esse desmesurado incêndio, porque acima dele estende-se o oceano de olhos e o infinito não pode ultrapassar o infinito”.

E assim, como romper o equilíbrio de duas forças iguais? “Onde existem duas forças – comenta Giordano – uma não sendo superior à outra, uma e outra cessam de ser operantes, uma vez que a resistência de uma iguala-se à insistência da outra”. A igualdade só é possível entre dois infinitos. Duas forças finitas em oposição sempre produzem a ruptura da harmonia e do equilíbrio, por serem desiguais.

E no fim do diálogo vem a resposta: acima dos olhos e do coração está o Desejo. “Estas duas potências da alma jamais são e podem ser satisfeitas por seu objeto uma vez que infinitamente elas o buscam”. O Desejo é o infinito que trabalha o interior das paixões e da razão. É o Desejo que leva o ver a se transformar em ação de ver, dando às paixões e ao intelecto movimento infinito.

A relação dos olhos e do coração, do pensado e do sentido, é posta num duplo movimento, ou seja “dois ofícios”. “Para os olhos: imprimir no coração e receber a impressão no coração, da mesma maneira que o coração tem dois ofícios: receber a impressão dos olhos e imprimir nos olhos. Os olhos apreendem as aparências e as propõem ao coração; elas se tornam então, para o coração, objeto de desejo, e esse desejo, ele o transmite aos olhos; estes concebem a luz, irradiam-na e, nela, inflamam o coração; este, abrasado, espalha sobre os olhos seu humor. Assim, primeiro a cognição emite a faculdade afetiva que, por sua vez e em seguida, emite a cognição”. Cada idéia dos Furores Heróicos faz ressentir o corpo e a busca incessante da felicidade e do prazer. Eis dois poemas de Giordano Bruno da obra Dos Furores Heróicos:

Bem que a martírios tu me tens sujeito
devo-te muito e te sou grato,Amor:
com nobre chaga me rasgaste o peito
e o coração me deste a um tal senhor,


de tão excelso e de tão vivo aspeito,
na terra imagem do divino autor,
Pense quem quer que é ímpio o meu destino,
se morro esp'rança e vivo desatino.

Contenta-me alta empresa;
e quando o fim clamado me escapara,
e em tanto arder minh´alma se gastara,

basta que seja nobremente acesa,
e que eu mais alto ascenda
e do número ignóbil me defenda.

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