14 janeiro 2008

Amor natural de Drummond

Carlos Drummond de Andrade (1902/1987) – É considerado o maior poeta moderno em língua portuguesa. A temática amorosa pode ser rastreada em toda a obra de Drummond. Mas as últimas publicações do poeta e o livro “O Amor Natural”, ultrapassam o simplesmente amoroso para desembocarem em uma representação estética do amor erótico, que se propõe como encontro também carnal, condição do amor-totalidade. “Em todos os poemas – como analisou a professora Rita de Cássia Barbosa no livro Poemas Eróticos de Carlos Drummond de Andrade -, desnuda-se a mulher, a presença indispensável para acender o impulso erótico do poeta. Explícita ou figuradamente, o eu lírico detém-se na região pubiana feminina, em seios, coxas, nádegas, tomados como objetos de desejo ou instrumento de gozo realizado. Ou são também revividos os encontros sexuais, ocasião em que a femina evolui de objeto desejável a objeto desejado, chegando, como sujeito desejoso, a fonte e receptáculo de prazer. A instância desejante, o homo, expressando-se pela voz do eu lírico, é sempre quem cuida da figuração”.

O que se passa na cama

(o que se passa na cama
é segredo de quem ama.)


É segredo de quem ama
não conhecer pela rama
gozo que seja profundo,
elaborado na terra
e tão fora deste mundo
que o corpo, encontrando o corpo
e por ele navegando,
atinge a paz de outro horto,
noutro mundo: paz de morto,
nirvana, sono do pênis.

Ai, cama, canção de cuna,
dorme, menina, nanana,
dorme a onça suçuarana,
dorme a cândida vagina,
dorme a última sirena
ou a penúltima...O pênis
dorme, puma, americana
fera exausta. Dorme, fulva
grinalda de tua vulva.
E silenciem os que amam,
entre lençol e cortina
ainda úmidos de sêmen,
estes segredos de cama.

“O que se passa na cama” reporta-se ao presente, insistindo no “segredo” que assinala a realização do ato amoroso. Segredo e intimidade percorrem todo o poema, graças à freqüência das vogais fechadas e dos sons nasais. Recursos que, associado à utilização da redondilha maior, contribui para a musicalidade do poema, intradenominado “canção de cuna”. Os quatro versos finais, envoltos pelo silêncio de “lençol” e “cortina”, mas “úmidos de sêmen”, reiteram o caráter crítico do poema. Não é na menção explícita aos órgãos sexuais, a sêmen, contudo, o que o erotismo se registra no poema.
No pequeno poema “A Paixão Medida” (1980), que dá título a um de seus livros, o erotismo se oculta, lúdico e malicioso, por detrás dos vocábulos, e se sutiliza, e se resolve em pura poesia: “Trocaica te amei, com ternura dáctila/e gesto espondeu./Teus iambos aos meus com força entrelacei./Em dia alcmânico, o instinto ropálico/rompeu, leonino,/a porta pentâmetra./Gemido trilongo entre breves murmúrios./E que mais, e que mais, no crepúsculo ecóico,/senão a quebrada lembrança/de latina, de grega, inumerável delícia?”.

No livro O Amor Natural, publicado em 1992, cinco anos depois da morte do escritor, se surpreende um Drummond fogosamente audacioso, deliciosamente irreverente. Um Drummond de língua, e boca, e mãos, e falo, e desejo, a cantar o sexo em tom de elegia, entre o exaltado e o melancólico, como a lamentar a fugacidade de prazeres que, de tão humanos, extravasam o divino. É uma coletânea de poemas sensuais, a maioria deles mantida em segredo pelo poeta enquanto estava vivo.

“Ao delicioso toque do clitóris
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando”.

Livros como Amor Amores (1975), Corpo (1984), Amar se Aprende Amando (1985) e Amor, Sinal Estranho (1985) é diferente de Amor Natural. Aqui, o lúdico se torna provocante. Aqui, Drummond é erótico sem jamais tocar no pornográfico. Ele fala de corpos noutros corpos estrelaçados, de mãos que separam pétalas e as acariciam, tendo o céu por testemunha e metáfora do orgasmo.

“A língua lambe as pétalas vermelhas
de rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.

E lambe, lambilongo, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,

entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos” (A Língua Lambe).

A publicação póstuma dos poemas ditos eróticos de Carlos Drummond de Andrade, O Amor Natural, suscitou a velha questão dos limites entre erotismo e pornografia. Ocupando o lugar de nosso maior bardo, o único talvez capaz de romper as barreiras do nosso paroquialismo para atingir os grandes espaços da poesia universal afirmou certa vez: “Agora que ficou chato ser moderno/serei eterno”. Em 1985, quando lançada a segunda edição de seus “Contos Plausíveis”, o poeta disse em entrevista que tinha medo de, publicado Amor Natural, ser chamado de “velho bandalho”. “Há no Brasil – não sei se no mundo -, no momento, uma onda que não é de erotismo. É de pornografia”, acrescentou Drummond. “Eu não gostaria que meus poemas fossem rotulados de pornográficos”. Os poemas pouco acrescentam à obra do poeta, que sempre foi abençoado por Eros.

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