Quando Salvador foi fundada em 1549 a ideia
principal do projeto português era torná-la não apenas uma cidade fortaleza,
mas o mais importante símbolo do império português nas Américas. Por conta da
sua história sociopolítica, a Bahia se transformou num território
multifacetado. A combinação de lentidão, tranquilidade e a sensação de
acolhimento e segurança provocada pela natureza local foi um dos principais
motivos da escolha deste sítio como sede da capital colonial. Assim Salvador
passou a ser porta de passagem, local de troca, de efetivação de contatos e
relações, ponto para onde convergia boa parte da produção regional, que daí
escoava para outras cidades, estados e países. E as formas de saudar o sagrado
(seja com palavras, ações ou uso de objetos) seja nos rituais católicos ou
religiosidade de origem africano, as duas tradições aparecem convivendo ou
justapostas. O sincretismo é a grande marca de religiosidade local. A mistura
foi um resultado natural da convivência entre duas tradições ricas (a ibérica,
católica e a africana com a religião dos orixás nagós).
Para muitos o sincretismo foi um recurso
que os negros encontraram para salvaguardar suas tradições. A beleza da cidade,
do imenso mar azul, das igrejas e sobrados reduziram o estrangeiro. O povo com
seus costumes e festas foi outro fator decisivo para eles se estabeleceram
aqui. Os hábitos alimentares afro-baianos, o modo de celebrar, a habilidade
para a dança e a festa como construtora de identidade, conquistando uma
participação expressiva seduziu a todos. Se a motivação é fundamentalmente
religiosa pouco importa, basta seguir o cortejo de Santa Bárbara, atravessar a
de Nossa Senhora da Conceição da Praia, Boa Viagem, Bom Jesus dos Navegantes,
Lapinha, Bonfim, Ribeira, Rio Vermelho, Itapuã, Pituba até cair no som
contagiante do trio elétrico ou no afoxé do Carnaval. É festa que não acaba
mais.
Conhecida como a “Roma Negra”, e, também,
como a maior cidade da diáspora atlântica. A incessante busca da África na
Bahia tornou Salvador ainda mais africanizada o que ampliou a sua imagética de
negritude. Salvador foi uma das cidades que recebeu forte influência do legado
africano. A imagem da cidade de Salvador, enquanto lugar de religiosidade
afro-brasileira, se consolidou nos idos de 1920 com a frase “Roma Negra”
cunhada pela famosa Babalorixá Mãe Aninha - fundadora do Terreiro Ilê Axé Apó
Afonjá - ao se referir a urbe como centro difusor da religião de matriz
africana no Brasil. A frase metafórica de Mãe Aninha foi citada pela primeira
vez por Edson Carneiro, no livro Negros Bantus (1937), quando buscou dar
visibilidade à contribuição decisiva dos negros bantos (angolas e congos) na
formação sociocultural do povo brasileiro. A expressão, posteriormente, foi
utilizada pela antropóloga Ruth Landes em dois momentos: 1947, na obra Cidade
das Mulheres e 1967, ao publicar os dois artigos: “O culto fetichista no
Brasil” e “Escravidão negra e status feminino”.
Assim, São Salvador da Bahia de todos os
Santos tem o epíteto de Roma Negra. É que se Roma é a capital da religião
católica, Salvador, além de ser o Vaticano do candomblé, tem uma população
maioritariamente negra e orgulhosa disso. A ancestralidade africana do povo de
Salvador transpira, não apenas na melanina, mas sobretudo na admirável
capacidade de manter tradições, manifestações culturais, formas de estar, de
comer e de vestir, durante centenas de anos, contra a mais cruel das opressões
– a escravatura.
A expressão “Roma Negra”
passa a então a ter uma conotação política, ou seja, significa espaço de
negritude, espaço de resistência. Essa nova metáfora possibilitou o despertar
da cultura negra em Salvador, nos anos 1970. Desse modo, sua literatura, estética
música, indumentária, dança, luta (capoeira), pintura, gravura, sua rica,
saborosa e colorida culinária (tabuleiros das conhecidas baianas de acarajé),
artesanato, arquitetura, paisagem urbana, praças, esquinas, adros de igrejas,
terreiros de candomblé constituíram-se em verdadeiros lugares de resistências,
de retomada das tradições, de reconstrução do saber viver, fazer e expressar os
símbolos afro-brasileiros. A citação a matriarca da Roma Negra (na canção Reconvexo,
de Caetano Veloso, gravada por sua irmã Maria Bethânia em 1989 no álbum Memória
da Pele), faz referência a Eugênia Anna Santos, que foi uma expressiva Ialorixá
do Estado da Bahia, descendente da Nação Grunce, que assim chamava Salvador por
ser a metrópole com maior número de negros fora da África.
Em 2009 publiquei um
livro, Bahia, um estado d´alma, para celebrar os 460 anos de Salvador
onde explico que cada um a carrega afora à sua maneira. Cada um tem a sua
Bahia. E em 2023 a Editora Solisluna publicou uma obra do artista chileno
radicado na Bahia, Esteban Vivaldi. Trata-se de Roma Negra. No belo
prefácio do escritor e jornalista José de Jesus Barreto ele informa: “Para
filme bastaria uma trilha sonora – uns aboios na sanfona de Luiz, uns acordes
minimalistas de João, aquela canção do mar de Caymmi. A obra Roma Negra, em
quadrinhos, do chileno-italiano Esteban Vivaldi, é cinema puro. Desenhos em
preto e branco, aquarelas. Cada quadrinho uma tomada, uma foto, com detalhes,
movimento, pleno domínio da luz, traços, jogo ou brinquedo de claridades e
sombreamentos contando, mostrando tudo. Arte. No roteiro, três histórias ou
narrativas entrelaçadas, tendo como referência a Bahia, a Roma Negra ou Cidade
da Bahia e o Mar, onde tudo começa, pelo desejo de sabê-lo, e onde tudo
termina, abrigo dos mistérios e encantamentos. Não é um livro para se ler
passando os olhos ou ver apressadamente. Os desenhos exigem apuro, sentimento,
como apreciar um alvorecer no sertão o a imensidão azul do mar....”.
A primeira narrativa
acontece no sertão baiano onde Dora pede para Zé lhe levar para ver o mar como
presente de aniversário. Eles conversam embaixo do pé do umbuzeiro (pela
importância de suas raízes foi chamada "árvore sagrada do Sertão"
pelo escritor Euclides da Cunha). Eles viajam montados no cavalo chamado
Dorival. No caminho a prosa do sertão vai virar mar e o mar virar sertão e
descobre o circo e as maravilhas de uma trapezista. Em um outro momento da narrativa
vemos um sujeito vendendo pintura e o resultado não poderia ser outra a não o
desenho da mulher gravida (Mulata Grande, de 1980) de Carybé, argentino de
nascimento, italiano de herança, brasileiro de criação e baiano por escolha de
vida. Falsificação? É preciso ler com atenção. Voltando aos dois que querem ver
o mar, Zé dá um belo presente a Dora, uma concha (elemento marítimo que
representa a fecundidade, o prazer, a prosperidade e a sorte). Eles chegam ao
Rio São Francisco, maior rio totalmente brasileiro e de extrema importância
para a região Nordeste do país. Tomamos conhecimento das raízes das plantas que
cura. Em 294 páginas os leitores acompanham os protagonistas se aventurando
pelo universo da aquarela, numa jornada cheia de referências à arte.
O estilo que o artista
imprime possui uma linha bem definida, estilo naturalista e em algumas
ilustrações o uso de sombreamento intensivo. A aquarela é quase como uma
assinatura nos trabalhos de Esteban e vemos em sua obra, uma característica
leve, maneira como ele trabalha a pincelada, a combinação de claro e escuro e a
própria paleta escolhida como características da identidade. A aquarela aguada
é uma maneira tradicional de se utilizar tinta que é obtida compondo o pigmento
com maior proporção de água, garantindo a transparência do material,
conseguindo assim um movimento de fluidez, que composição baseada em mistura
com água lhe proporciona uma característica leve, fluídica e muito sutil. Há um ótimo jogo de luz e sombra. O uso das
paisagens de Salvador, suas ruas, becos e ladeiras, o camelô invadindo a
cidade, os fios entrelaçados nas ruas, os micos nos fios.... Tudo isso se
complementam e levam o leitor a explorar a capacidade imaginativa ao folhear as
páginas dessa obra.
Esteban Vivaldi é pai do
Bruno e nasceu em Valparaíso, no Chile, em 1975. Viveu na Patagônia chilena
antes de se mudar, em 1983, para a Itália. Em Roma, estudou cinema e trabalhou
como editor e autor de documentários. Também cursou arquitetura em Veneza, sem
exercer nunca essa profissão, mas ela o acompanha como um cachorro fiel. Sempre
desenhou, desde pequeno e sem parar. Nos anos 90, esteve entre os pioneiros do
grafite em Roma, cidade onde viveu toda a sua adolescência. Em 2014 mudou-se
para o Brasil, seguindo um amor. Atualmente, trabalha como ilustrador e
cineasta entre Brasil, Chile e Itália.
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