Artista clandestino, desenhista lascivo, sacana naïf, lenda. Carlos Zéfiro colecionou muitas definições durante o período em que alimentou os sonhos eróticos de milhares de adolescentes, entre as décadas de 50 e 70. Para uns, os desenhos de traços simplórios de Zéfiro eram nada mais que perversão e projeções de uma mente doentia. Para outros, arte underground, "cult" total. Essa é a opinião, por exemplo, da cantora Marisa Monte, que ilustrou o encarte do CD "Barulhinho Bom" com desenhos de Zéfiro (que foram proibidos nos Estados Unidos). Contudo, poucas pessoas admiram tanto ou se dedicaram a conhecer a obra do artista como o pesquisador luso-amazonense Joaquim Marinho, colecionador voraz dos trabalhos de Zéfiro. A arte de Carlos Zéfiro, esse "fantasma com nome e sabor parnasiano", na definição de Marinho, escandalizava pais extremados e satisfazia seus filhos pelo simples fato de representar o sexo da forma menos convencional, sem limites ou meias palavras. Resumindo: eram sacanagem na forma mais pura.
Para Marinho, as histórias de Zéfiro foram a primeira informação sexual dos leitores, pois, além de custarem pouco, eram vendidas na banca da esquina. "Elas tiveram uma influência brutal na formação sexual dessa geração", analisa o pesquisador. "Com a rebordosa de 64, proibiram e apreenderam as revistas porque acharam que eram uma forma de aniquilar a juventude, uma perversão."
Na opinião do jornalista Sérgio Augusto, que também já andou dissecando a obra de Zéfiro anos atrás, o artista é, sem dúvida, o inventor do "gibi pornô underground". "As revistinhas eram compradas sorrateiramente, como todos os pecados. Tinham aspecto tão modesto quanto as primeiras e também clandestinas edições dos contos de Dalton Trevisan, de quem, aliás, Zéfiro sempre me pareceu uma espécie de primo espiritual", afirma Sérgio Augusto. Na análise do jornalista, a "grosseria" da pornografia de Zéfiro, que despertava o mais profundo ódio nas feministas, trata-se nada mais que coerência ao espírito das histórias em quadrinhos, por natureza "uma arte sem punhos rendados".
"A rigor, a única diferença entre uma história de Zéfiro e uma fotonovela é que na dele os personagens consumam aquilo que apenas passa pela cabeça dos protagonistas da fotonovela", observa Augusto. "Zéfiro é, no mínimo, menos hipócrita". Carlos Zéfiro interrompeu a produção de histórias em 1968, temendo a perseguição do regime militar. Na época, ele ainda enfrentava a concorrência das revistas pornográficas dinamarquesas, cujas fotos faziam os desenho de Zéfiro parecer um conto de fadas.
LINGUAGEM - Eminentemente didáticas e representando o pensamento médio do brasileiro da época (talvez aí uma das explicações do seu incrível sucesso), eram portadoras de um linguajar próprio que influenciou pelo menos três gerações, além de ensinar importamentos e posições sexuais que o adolescente, sem nenhuma informação, jamais poderia imaginar. E, com todas as deficiências e preconceitos, preparava-o para enfrentar situações semelhantes na vida real. As revistinhas eram motivo para intermináveis masturbações, não raro vinculadas a um certo complexo de culpa. Sobre os masturbadores pairavam todos os tipos de ameaças, indo do insólito nascimento de pêlos nas mãos prazerosas, até tuberculose, miolo mole e morte. Por isso, depois de algum tempo, o pecador costumava rasgar os exemplares e poucos chegavam a formar uma bíblia.
Para melhor compreender o fenômeno, é fundamental transportar à época em que esses quadrinhos foram produzidos, com governos autoritários e conservadores, bem como forte influência da Igreja Católica no comportamento da juventude. Naqueles tempos, onde a pornografia era proibida por lei e tudo tinha sabor de descoberta, representações visuais e explícitas do sexo eram praticamente inexistentes no Brasil, fazendo com que os adolescentes aliviassem suas tensões com compêndios de medicina, imagens de tribos indígenas ou quando muito com alguns romances mais picantes de Jorge Amado. As "casas de luz vermelha" eram verdadeiras instituições, onde o garoto era levado pelo pai para "ter sua primeira vez", no que era auxiliado pela prostituta, profissional e expert que lhe daria todo o suporte e conhecimentos básicos para não fazer feio na lua-de-mel, já que a noiva do cliente era "moça de família" e nunca transaria antes do casamento. Embora a "moral" e os "bons costumes" já fossem verdadeiras piadas, as pessoas ainda fingiam levá-los a sério, e em meio a este cenário deveras bizarro, a obra zefiriana surtiu como uma bomba atômica.
CLANDESTINA - No início dos anos 50, período em que, de maneira repentina e misteriosa, um novo tipo de publicação começou a ser editada: os catecismos – gibis de 32 páginas em formato pocket, com histórias sacanas recheadas de sexo explícito eram impressas de modo rudimentar e em papel da pior qualidade. Confeccionados no Rio de Janeiro e escoados pelo Brasil inteiro a partir de São Paulo, esses quadrinhos eram encontrados de forma clandestina nos mais diversos pontos de venda, tais como padarias, botequins e bilheterias de pequenos cinemas. Contudo, o local onde mais abundavam era nos jornaleiros, responsáveis por um verdadeiro ritual na venda destas relíquias: o leitor deveria comprar um jornal ou uma revista "séria", que por sua vez serviria apenas para esconder entre suas páginas a mercadoria ilegal.
A origem do termo é nebulosa, mas segundo a lenda era muito comum os jovens camuflarem essas HQs também dentro de livros religiosos, daí o nome de catecismo. Assim, convencionou-se que uma coleção de 12 exemplares constituía um "testamento", enquanto 24 deles formavam uma "Bíblia". Para desespero dos pais, padres e professores, em pouco tempo os catecismos se tornaram uma febre entre o público masculino, rodando de mão em mão e dando início à vida sexual de toda uma geração.
CHARME - Vários foram os artistas que se dedicaram a estas publicações, mas devido à peculiaridade de seu trabalho e ao fato de ser o mais prolífico de todos, Zéfiro foi o único que se destacou, angariando uma legião de fãs e imitadores. Como desenhista, era medíocre: faltava-lhe conhecimento de anatomia, as imagens eram visivelmente decalcadas de outras fontes e, de um quadrinho para o outro, os personagens costumavam sofrer mudanças físicas inexplicáveis. Todavia, estes desenhos toscos tinham um charme especial e eram cheios de estilo, bastando uma rápida passada de olhos para reconhecer o autor, que supria as deficiências de seu traço com textos envolventes e ótimos roteiros.
Apesar de terem atravessado com êxito a década de 60, os catecismos fraquejaram nos anos 70, quando começaram a pintar por aqui as primeiras fotonovelas pornográficas, contrabandeadas diretamente da Europa. Muito mais baratas e com cenas reais de sexo, em pouco tempo elas aniquilaram o concorrente desenhado, mas o estrago já estava feito: as pessoas não eram mais as mesmas e muitos antigos leitores, no embalo da cena underground americana e influenciados pelos gibis de sexo que escondiam da mãe, passaram a fazer seus próprios quadrinhos, desta vez marcados por um forte cunho político.
BÍBLIA - Para que não sabe, cada exemplar da revistinha era conhecido como catecismo. A coleção de 12 catecismos encadernados formavam um testamento. A primeira coleção recebia a denominação de velho e uma segunda de novo testamento. E, finalmente, quem possuía 24 histórias encadernadas num mesmo volume dispunha de uma invejável bíblia. Entre os vários desenhistas das revistinhas de sacana , pelo menos um se destacou dos demais pela qualidade das estórias, pela e,patia com a mentalidade do leitor, a moralidade vigente e, sem dúvida, pela originalidade: Carlos Zéfiro.
As revistinhas de Zéfiro marcaram várias gerações e começou a sair do campo proibitivo e a ganhar status na área da sociologia. Duas obras regataram Zéfiro do mundo da subliteratura: O Quadrinho Erótico de Carlos Zéfiro, uma análise de Otacílio d´Assunção, e A Arte Sacana de Carlos Zéfiro, edição organizada por Joaquim Marinho com textos de Roberto da Matta, Sérgio Augusto e Domingos Damasi.
DESVENDADO - A verdadeira identidade do desenhista e escritor dos famosos Catecismos, as HQs eróticas que fizeram jorrar o esperma dos adolescentes brasileiros dos anos 60 e 70, foi um enigma por três décadas, até ser desvendado em uma reportagem da versão nacional da Playboy, em novembro de 1991. Os catecismos brasileiros devem muito a outro produto supostamente também feito no México: as Bíblias Tijuaninas ou, como são muito mais conhecidas, as Tijuana Bibles. Provavelmente essas HQs eróticas não eram mexicanas coisa nenhuma, o apelido pegou devido ao aviso que elas traziam na capa, "printed in Tijuana" fazendo referência a uma cidade industrial do noroeste do México, na fronteira com os EUA. O mais certo é que esse aviso era uma forma de tentar driblar as leis puritanas em vigor nos Estados Unidos, mas a suposta origem alienígena só fazia aumentar o mistério sobre aquele legítimo produto marca diabo.
Seja como for, mexicanas ou americanas, as Tijuana Bibles apareceram em solo ianque no final dos anos 20, atingiram o auge durante o tempo da Grande Depressão dos anos 30 e 40, e sumiram na década de 50 (ou seja, a decadência veio 10 anos antes do surgimento de Zéfiro no Brasil). Nos EUA, a decadência das Tijuana Bibles coincidiu com o início do processo de Revolução Sexual, em meados dos anos 50, com o marco que representou a criação da revista Playboy. Já os catecismos de Zéfiro começaram a rarear nos anos que antecederam a abertura política no Brasil, entre o fim dos anos 70 e início da década seguinte, quando os militares voltaram aos quartéis, permitiram o surgimento de um presidente civil e abriram espaço para eleições diretas.
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