“Laurenço e Dolores” (de Mario de Fernando e maria) abre o CD e narra a trajetória da dupla Lourenço “que queria mesmo ser Dolores Pão de Mel” e Dolores “queria ser Lourenço Karatê”. Na segunda faixa o acorde da sanfona dá o tom de “Alquimia de Maquiavel”, uma canção triste, romântica, quase gótica e de bela poesia. “Meu riso é fugaz/entenda, ó rapaz/não vou mais viver/histórias de amor/o meu sonho jaz/com meus ancestrais/a nossa canção/não tem mais valor/eu já cumpri/minha cota de paixão/já não escuto a batida do meu coração....”
“Devo evitar” é um samba no melhor estilo do gênero, onde a letra flui entre os acordes do violão e percussão. No mesmo caminho de uma letra melancólica Dantão canta “Porto Seguro”: “Agora ela vai saltar um precipício/agora ela vai partir pro sacrifício/e então ela vai se deitar com forasteiro/e assim ela vai percorrer o mundo inteiro”. Em “Nepal”, Guiga Scott expõe seu trompete numa letra que diz “Aqui sou forasteiro/mas eu me saio bem/aqui sou brasileiro/um brazzillian man/se tudo tá uma droga/neste mundo ateu/eu vou pra sinagoga/quero ser judeu”.
“Sambando no concreto”, letra e música de Adilson Borges reafirma que “o poeta sofre muito mas o gozo vale o risco”. “Barroquinha” traz o violino de Margareta Cichilova e o violoncelo de Marcos Roriz, a voz da soprano Lilia Falcão. A musicalidade da canção é de uma beleza sem igual. Já “Coelho” é dedicada à mulher do artista: “Coelho/o nosso amor tá além do espelho/pra lá do azul do Rio Vermelho/não somatize a dor de um anjo mau”.
“Idade da razão” fala dos encontros e desencontros no relacionamento amoroso. Em “Ribeira” Dantão recomeça o jogo amoroso trilhando em Madri, Milão, Xagrilá, Monte Serrat passando pela Ribeira. Mas um dos pontos altos é a faixa “Pequeno Príncipe”, dedicado ao filho pequeno. A letra é de uma pureza, rara beleza infantil que emociona: “Cigarra anda de trem/formiga, de avião/você, dentro do meu bem,/viaja de..Cordão!//De onde cê vem/pra onde cê vai?/Deus me escolheu pra ser seu pai//Aqui tem baobá/histórias do Rei Leão/tem colo pra te ninar/varinha de condão//Ondas no mar/pipas no céu/muitos barquinhos de papel”. A flauta doce de Luciano Chaves, o violão de Jurandir Santana, a percussão de Giba, o glockenspel de Ataualba Meirelles e o coro infantil de Victor Hugo, Neto e Andreza junto com a voz de Paulo Dantão dão a forma perfeita de um hit que precisa ser tocado em todas as rádios brasileiras. Atenção Radio Educadora da Bahia, que sempre prima pela música de qualidade, toque Paulo Dantão que o público merece ouvir.
O álbum privilegia cordas e sopro com sonoridade mais acústica. O tom é intimista e seu repertório mistura bossa nova, samba, jazz com memória musical bem confessional. Os belos arranjos garantem a unidade do disco. O canto é cheio de alma, de verdade interior. E a sonoridade é única, criativa, harmoniosa e cheia de nuances que foge do som que se ouve muito em nossa terra. Vale conferir o trabalho de Paulo Dantão, o álbum tem uma excelente capa de Lincoln S, gravado e mixado no Virtual Studio, em Salvador. Para ouvir e reouvir a cada momento da vida. Simplesmente belo!
Gugu, este texto está no meu blog Coisas do Coração adilsondechico.Wordpress.com
ResponderExcluirComo cito você e você apropriadamente elogia o disco de Dantão, projeto do qual participo, ouso enviar-lhe.
Um abraço
“Assim falou Jônatas Conceição”
Jônatas virou estrela e entrou para a história
Aguenta, coração velho.
Sábado (4. abril. 2009), saí cedo com Marília, minha mulher, eu em jejum, para fazer exame de sangue. Na volta, pego o jornal na portaria, e da minha queridíssima Cleidiana Ramos recebo uma notícia como uma bala: Jonatas Conceição morreu.
O poeta, militante do Movimento Negro, professor e, sobretudo meu amigo, de mais de 30 anos, foi enterrado, às 16h30, de sexta-feira, mesmo dia da morte. Não sabia que estava doente. Câncer…
Sem despedida
Última vez que o vi, acho que foi ano passado na porta do Museu do Ritmo, no Mercado do Ouro, pouco antes de começar a versão (louquíssima pra variar) de José Celso Martinez sobre a guerra de Canudos.
Sorrimos, eu mais gaiatamente e ele mais tímido como sempre, fizemos sinal de positivo a distância. Se soubéssemos (Como? Não sei) que não nos veríamos mais, tenho certeza que o encontro seria mais próximo, eu daria um abraço, ele apertaria minha mão, perguntaria as novidades, fazendo esforço para não gaguejar, e chamar-me-ia, como sempre fez, de Abelha, um apelido de infância que pouquíssimos ainda usam – para mim é uma espécie de teste de carbono sobre o tempo que me conhecem.
Agora que Jônatas disse adeus, aos 56 anos (minha idade), serei Abelha para menos gente fora do círculo familiar: Maria Luiza Bairros, a secretaria de Promoção da Igualdade Racial e os jornalistas Gutemberg Cruz (Gugu), Osmar Martins (Marrom), Raimundo Souza (China), o mecânico Dilsinho e família, de Cidade Nova.
Chorei, chorei, chorei (pode ironizar, Dantão, mas não me envergonho, de chorar quase todo dia desde que fiz a cirurgia do coração), pensando em Jônatas, que ainda na Liberdade, brincava comigo e com minha filha Cristiana, à época com uns dois, três anos (hoje 33, desculpe revelar Thyana): “Abelha, esta menina ainda vai ser Deusa de Ébano do Ilê”.
Militância
Anos depois, trabalhamos juntos na revisão de A TARDE, e depois no Irdeb duas vezes, a última na rádio Educadora, onde ele apresentava um programa sobre música afro-brasileira, sobretudo do Ilê Aiyê, do qual era diretor há muito tempo.
Após o choro, contei a Marília, que o conhecia de vista e de encontro formais, e relembrei um encontro que tive com ele, há quase nove anos (Paulo Leandro, jornalista, sabe todas as datas, mas quem me socorreu foi outro colega, José Pacheco) na Rua do Paraíso, um ou dois dias depois de eu dar uma entrevista em A TARDE sobre o fechamento da sucursal da Gazeta Mercantil em Salvador (7.11.2001) e a demissão de todos os jornalistas. Jônatas disse que logo, logo, eu estaria em outro emprego, perguntou pelos meus filhos, por Vina, minha ex-mulher. Em seguida, ironizou dizendo que eu só fazia me divertir e trabalhar. E arrematou a conversa com uma frase: “O que é que você está fazendo contra o Estado?”
Hora do encantamento
Marília me deu um café da manhã cheio de frutas e sucos. Depois, convidou: Vamos pro quarto descansar, no ar condicionado. Eu disse que queria ficar na sala, um pouco, pensando em Jonatas e tocando. Ela então ordenou: Vamos para o quarto, traga o violão. Fazer o quê? Ela deitou, se protegeu do friozinnho, fez um tralalá numa música. Quando cantei Coração Leviano disse ”tá bonito, mas cante mais baixo que já estou perto do paraíso”, disse com os olhos fechados. Tá legal, respondi, mas já em estado de encantamento, fechei a porta devagarzinho, peguei um papel oficio, fui pra sala silenciosa (Chico, meu filho, ainda dormia, e Marta, que cuida dele, é o silêncio em pessoa) e comecei a compor. Acho que em pouco mais de uma hora e meia, eu já estava guardando no velho gravador de fita cassete a canção que fiz para o meu amigo que partiu sem me dar um abraço.
Poucas músicas me lavaram tanto a alma. Marília adorou. Mas não mostrei a todos que foram lá em casa neste sábado de dor e criação. Dantão e Gil Maciel foram exceção. Gil pirou de vez, analisou a frase de Jônatas, esbugalhou os olhos, destacou as misturas de ritmo, viu rock e jazz onde acho que é reggae, jazz e samba-reggae, disse que era linda e chorou, mas discretamente.
Dantão ouviu, compenetrado, algumas vezes olhando o rascunho que estava no sofá, começou a cantar comigo, elogiou muito (algumas vezes, com olhos molhados, mas sem chorar ) . Ele e Marília, assim como Gil, discutiram a pergunta de Jônatas. Ela quis saber minha resposta, ele perguntou se o falecido era anarquista e apresentaram vários projetos para a música de Jonatas. Na despedida, já na porta do elevador, Dantão falou: ”Que música massa”. Vou tentar postar no Coisas do Coração. Espero, sobretudo, que Ana Célia, irmã de Jônatas, goste.
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