05 novembro 2008

Porta-voz de uma geração de rebeldes

Há 90 anos morria o francês Wilhelm Apollinaris de Kostrovitsky, que usava o pseudônimo de Guilhaume Apollinaire (1880/1918). Ele nasceu na Itália e foi criado em Paris. Escritor claramente à frente do seu tempo, defende a arte dos fauves, apóia o cubismo de Picasso e Braque e mantem-se em contacto com Marinetti e os futuristas italianos. Em 1913 publica Alcools. A força das suas imagens leva-o aos limiares do surrealismo.

SIGNO (Tradução: André Dick)

Fui submetido à Regência do Signo de Outono
Portanto amo as frutas e detesto as flores
Lamento todos os beijos de que fui dono
Igual à nogueira colhida diz ao vento suas dores
Meu outono eterno ó minha estação mental
Mãos dos amantes de outrora em teu solo agarradas
Uma esposa me segue, é minha sombra fatal
As pombas à tarde batem suas últimas asas
Levou o Simbolismo francês em direção à modernidade, ao Surrealismo que já se anunciava. Como crítico de arte, defendeu o Cubismo. Tornou-se um dos maiores poetas franceses ao escrever “Zone”, uma dolorosa fantasia romântica que figura até hoje entre os clássicos franceses. Escreveu também romances ditos pornográficos, dos quais As Onze Mil Varas é o mais conhecido. Ele liderou a equipe que pesquisou e organizou os livros “proibidos” que fariam parte da famosa coleção Inferno da Biblioteca Nacional francesa, existente até hoje. Grande poeta, ao se dedicar ao erotismo, não teve papas na língua: foi fundo.
A PONTE MIRABEAU (Tradução de Jorge de Sena)
Sob esta ponte passa o rio Sena
e o nosso amor
lembrança tão pequena
sempre o prazer chegava após a pena
Chega a noite a hora soa
vão-se os dias vivo à toa
Mãos dadas nós fiquemos face a face
enquanto sob
a ponte dos braços passe
de eternas juras tédio que se enlace
Chega a noite a hora soa
vão-se os dias vivo à toa
E vai-se o amor como água corre atenta
e vai-se o amor
ai como a vida é tão lenta
e como só a esperança é violenta
Chega a noite a hora soa
vão-se os dias vivo à toa
Dias semanas passam à dezena
nem tempo volta
nem nosso amor nossa pena
sob esta ponte passa o rio Sena
Chega a noite a hora soa
vão-se os dias vivo à toa
Um dos mais importantes autores do modernismo francês, Apollinare era considerado o porta-voz de uma geração de rebeldes. Poeta respeitado, editor da conceituada revista Lês soirées de Paris (As tardes de Paris). Como ele viveu a época de ouro da literatura libertária francesa, os autores modernistas viviam à sombra do movimento cubista, que tinha sua origem nas artes plásticas. Faltava à literatura esse status de originalidade. E eles foram buscar nos transgressores franceses Marquês de Sade e Sacher-Masoch.
Mas sua criação esfuziante não se limitava aos versos bem construídos de rima romântica. Nas madrugadas, após viagens de absinto, Apollinaire escrevia outros livros, entre eles uma obra prima do erotismo: Les onze mille verges. Ele cultivava um fascínio especial pelo romance libertino – foi o responsável pela introdução dos “livros malditos” de Sade no cenário literário francês no início do século. Além dos libertinos franceses, Apollinaire também cultivava uma predileção pelos escritores licenciosos da Itália renascentista como Aretino e Baffo, ambos publicados em suas coleções – Coffret du Bibliophile e Les Maîtres de l ‘Amour. Atraído pela liberdade de expressão dos autores do passado reputados como obscenos, o poeta incorporou em sua obra diversos traços de uma literatura que, expulsa dos cânones, lhe revelava o avesso da tradição.
Segundo a professora Eliane Robert Moraes (que dirige a coleção “Os Libertinos” da Editora Ágalma), ao escrever a novela “As onze mil varas”, Apollinaire lançou mão de vários elementos dessa outra tradição literária que a moralidade do século XIX preferiu encerrar nos porões da memória coletiva. “Se certas passagens da novela nos fazem lembrar a libertinagem cruel dos personagens de Sade (...), outras evocam a lubricidade debochada de Aretino (...). O resultado dessa combinação e o humor negro, quase macabro, que desafia o leitor a distinguir o riso do pânico”.
Se o humor é um componente fundamental do livro – a começar do título, que faz alusão às onze mil virgens que acompanharam o martírio de Santa Úrsula -, sua contrapartida é a perversidade. Ao apresentar uma sucessão vertiginosa de cenas violentamente eróticas, a novela mobiliza os diversos motivos de sadismo literário, como a necrofilia, a escatologia, a bestialidade, a pedofilia, o sacrilégio, o incesto e o assassinato. Lançado em 1907 – assim como a outra obra pornográfica do autor, Les Exploits d’um jeune don Juan – o livro foi publicado anonimamente. Ele só veio a ganhar uma edição oficial com o nome do escritor em 1970, quando seus herdeiros admitiram publicamente a autoria.
Apollinaire morreu no dia 09 de novembro em Paris vítima de uma epidemia de gripe aos trinta e oito anos. Seus livros libertários e eróticos foram publicados com pseudônimo, mas seu estilo refinado o denunciou. Assim, foi perseguido e obrigado a negar seu trabalho. Hoje ele é reconhecidamente um dos maiores autores de todos os tempos.

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