Existem momentos em que toda palavra pronunciada parece ferir mais do que ajudar. Uma palavra mal-dita pode perturbar, estragar um negócio, uma amizade. As vezes não é culpa de quem falou, mas do coração que escutou. O filósofo alemão Martin Heidegger disse que “a palavra é a morada do ser” e de que as coisas existem quando são nomeadas, ditas, pronunciadas. Adriana Falcão recolheu palavras que o vento lhe trazia e publicou no precioso Pequeno Dicionário de Palavras ao Vento. “Palavras sempre sabem o que querem. Quero não será desisto. Sim nunca jamais será não. Árvore não será madeira. Lagarta não será borboleta. Felicidade não será traição. Tesão nunca será amizade. Sexta-feira não vira sábado nem depois da meia-noite. Noite nunca vai ser manhã. Um não serão dois em tempo algum. Dois não será solidão. Dor não será constantemente. Semente nunca será flor. As palavras também têm raízes mas não se parecem com plantas a não ser algumas delas, verde, caule, folha, gota. As células das palavras são as letras. Algumas são mais importantes do que as outras. As consoantes são um tanto insolentes. Roubam as vogais para construírem sílabas e obrigam a língua a dançar dentro da boca”.
É preciso dominar as letras, as palavras, as frases. Já pensou na confusão que elas poderiam causar no mundo caso se rebelasse contra todas as formas erradas como são utilizadas? Pois o ensaísta, poeta e tradutor José Paulo Paes na sua fábula moderna A Revolta das Palavras, a palavra usada sem pudor em um anúncio publicitário mentiroso, se retira e dá lugar à palavra que deixa o texto verdadeiro. O mesmo fato estranho se repete em outros textos e a hipocrisia do mundo é desmascarada com esta rebelião. As palavras se cansaram de ser usadas de forma desonesta e resolveram, aprontar. Assim o leitor toma consciência da importância de cada conjunto de letrinhas para o sentido de uma mensagem. Idéia divertida e inusitada que faz refletir.
Pode parecer brincadeira de criança: juntam-se letras e formam-se palavras. Juntam-se palavras e formam-se frases. Uma coisa tão singular, tem efeitos plurais. O texto transporta as pessoas, a palavra dele me causa arrepios, a frase que ela disse há anos ainda retumba nos meus ouvidos. Essa magia das palavras, tão efêmeras, sem substância, provocando tantas reações em toda gente está no livro Encantar o Mundo pela Palavra, de Rubem Alves e Carlos Rodrigues Brandão.
O grande milagre da palavra é quando alguém fala do local onde nasceu, por exemplo, com ternura e saudade, ressuscitando aquilo que não existe mais. Melhor dizendo, traz para perto o que está longe. Recria aqui coisas que, ditas com emoção, vivem de novo na fala. “Quem conta um conto aumenta um ponto”, recria. Quem, ouve se emociona. As palavras ditas, escritas, se eternizam.
Já Rolando Barthes disse que toda palavra enunciada, sobretudo a palavra da política ou mesmo da ciência, é uma palavra que sai de uma fonte de poder. Um poder a gera e ela enuncia um lugar do poder. Para ele, a única maneira de se livrar do poder da palavra é trapacear com ela, não levá-la completamente a sério. E só a literatura consegue fazer completamente a sério. E só a literatura consegue fazer isso. A literatura diz de muitos e diversos modos.
O discurso político é, por excelência, o lugar de um jogo de máscaras. Toda palavra pronunciada no campo político deve ser tomada ao mesmo tempo pelo que ela diz e não diz. Jamais deve ser entendida ao pé da letra, numa transparência ingênua, mas como resultado de uma estratégia cujo enunciador nem sempre é soberano
Foi com palavras que Xerazade sobreviveu noite após noite com o sultão. Ao descobrir a traição de sua esposa e de mandar mata-la, o sultão dormia cada noite com uma mulher e pela manhã ordenava a execução da companheira daquela noite. Xerazade começou a contar uma longa estória e o sultão ficou encantado com nova estória contada a cada noite. Assim As Mil e uma Noites produziram no sultão o encantamento pela palavra. A palavra (em forma de estórias) salvou Xerazade.
Em Grande Sertão: Veredas, romance de Guimarães Rosa foi escrito como um jorro de palavras, que começa na primeira linha, com um travessão e uma palavra “nonada”, e termina – se é que termina – na última página e na última linha, com a palavra “travessia”, logo acima do símbolo de infinito, que fecha o livro. Guimarães Rosa faz uma recriação da linguagem, narrado pela personagem Riobaldo, de suas andanças pelo sertão. Encerro com a composição “Tantas Palavras”, de Chico Buarque: “Tantas palavras/Que eu conhecia/Só por ouvir falar, falar/Tantas palavras/Que ela gostava/E repetia/Só por gostar...(...)/Tantas palavras/Que eu conhecia/E já não falo mais, jamais/Quantas palavras/Que ela adorava/Saíram de cartaz”.
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