O cantor e compositor Dorival Caymmi morreu no último sábado (dia 17 de agosto) no Rio de Janeiro, aos 94 anos. Vítima de insuficiência renal e falência múltipla dos órgãos, o cantor baiano era conhecido pelo seu pequeno produção composta de pouco mais de cem canções e pela fama de preguiçoso. Se a quantidade era pouca a qualidade suas composições era muita. Ele terminou a vida reencontrando o tema mais famoso de suas obras. Nos seus momentos finais, olhava o mar.
“Ficamos sem mar, sem vento, sem rio, sem floresta. Ficamos num deserto” (Aldir Blanc, compositor). “O frescor e a modernidade dele eram eternos” (Carlos Lyra, cantor e compositor). “Ele cantou da forma mais íntegra e verdadeira. Falou do povo baiano, da natureza, do mar, da Bahia, com uma verdade e simplicidade incríveis. É um compositor único, de uma grandeza incrível, que falou do amor de uma maneira muito especial” (Gal Costa, cantora).
Com a morte de Dorival Caymmi, o país perdeu o último dos grandes cantores e compositores da década de 30. A afirmação foi feita pelo novelista Gilberto Braga, no Salão Nobre da Câmara dos Vereadores do Rio, onde o corpo de Dorival está sendo velado. “Com a sua morte, não fica mais nenhum deles vivo. Apesar de a década de 60 ter sido brilhante do ponto de vista musical, a de 30 é o apogeu da música popular brasileira, com Ari Barroso, Noel Rosa, o próprio Dorival e muitos outros”.
João Valentão é brigão
Pra dar bofetão
Não presta atenção e nem pensa na vida
A todos João intimida
Faz coisas que até Deus duvida
Mas tem seu momento na vida
É quando o sol vai quebrando
Lá pro fim do mundo pra noite chegar
É quando se ouve mais forte
O ronco das ondas na beira do mar
É quando o cansaço da lida da vida
Obriga João se sentar
É quando a morena se encolhe
Se chega pro lado querendo agradar
Se a noite é de lua
A vontade é contar mentira
É se espreguiçar
Deitar na areia da praia
Que acaba onde a vista não pode alcançar
E assim adormece esse homem
Que nunca precisa dormir pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo do que sua terra. (João Valentão, de Caymmi)
É dengo que esse samba tem
“Em algum lugar entre a natureza e a cultura, a tradição e a invenção, a história e o anacrônico, a obra de Caymmi guarda um mistério tanto mais recôndito quanto mais exposto, na simplicidade plenamente oferta de suas canções”. A opinião é do poeta e letrista Francisco Bosco que traça o retrato de Dorival Caymmi no livro da série “Folha explica”, dedicado ao compositor baiano. Bosco esquadrinhou a obra caymmiana em “sambas sacudidos”, “canções praieiras” e “sambas canções”. Viajando com propriedade e na medida certa sobre um artista cuja singularidade compara à Clarice Lispector na literatura e Iberê Camargo nas artes plásticas.
A obra, pequena quantitativamente e imensa qualitativamente, é formada, em sua maior parte, por clássicos da canção popular brasileira. Segundo Bosco, os princípios composicionais norteadores da obra caymmiana são sinceridade, simplicidade e elaboração. “Em sentido geral, a obra de Caymmi é feliz, afirmativa e solar, apresenta uma Bahia pré-industrial, alegre e sensual”.
A obra de Caymmi não tem antes nem depois na tradição da canção popular brasileira. “Um estilo inconfundível quase sem seguidores na música popular brasileira”, comenta o pesquisador André Diniz. “Não tendo antecessores, imprimiu sua marca inconfundível em tudo o que fez (...) Caymmi não se filia a nenhuma corrente, escola ou modismo”, declarou outro pesquisador, Jairo Severiano. “Ele é um autor inaugural. A música dele, e como ele casa música e letra, com tanta maestria, é sem igual na MPB”, enfatizou Chico Buarque. Para Francisco Bosco, Caymmi é um grande mestre cancionista porque, justamente, pensa e cria a canção levando em conta essa totalidade indiscernível. “Dentro de sua obra tem –se a impressão de que letra e música nasceram juntas, ou antes, nunca nasceram – sempre existiram”.
Vamos nos deter aos sambas sacudidos, repletos de remelexos e requebrados. Para muitos, as ladeiras de Salvador entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta pode ter sido de extrema importância para os sambas de Caymmi. Foram elas as principais responsáveis pela beleza das pernas e os glúteos torneados das baianas. Caymmi, como afirma Antonio Risério, “é o poeta do bumbum em movimento”. A vizinha quando passa “mexe com as cadeiras pra cá/mexe com as cadeiras pra lá/ela mexe com o juízo/do homem que vai trabalhar” (A Vizinha do Lado). E “quando você se requebrar/caia por cima de mim” (O Que é Que a Baiana Tem?).
E sondando o segredo do samba de Caymmi, Francisco Bosco descobre que o requebrado das mulheres em Caymmi possui uma qualidade especial, “trata-se de um rebolado gracioso, a um tempo sensual e discreto, extremamente feminino, poderoso e consciente de seu poder, mas como que brejeiro, delicado, sutil”. Até chegar a palavra chave desse feminino-poderoso: o dengo. “O dengo é a qualidade presente em todos os gestos e movimentos da mulher: ´É dengo, é dengo, é dengo, meu bem!/é dengo que a nega tem/tem dengo no remelexo, meu bem!/tem dengo no falar também//-Quando se diz que no falar tem dengo/-tem dengo!tem dengo! tem dengo! tem.../-quando se diz que no andar tem dengo/-tem dengo! Tem dengo! Tem dengo!tem.../-quando se diz que no sorrir tem dengo(...)/-quando se diz que no sambar tem dengo (...)´.”.
Em sua biografia sobre o avô (Dorival Caymmi, Cancioneiro da Bahia, Stella Caymmi), o compositor comenta a singularidade do dengo, procurando relacioná-lo a um certo mudus vivendi baiano: “Não sei de palavra tão bonito quanto ´dengo´. Dengo...Denguice...dengosa...Palavras que dizem muita coisa, que definem, por vezes, a personalidade de uma mulher. O sol do Nordeste, aquele calor das tarde pedindo rede e água de coco, pedindo cafuné e dando ao corpo certa moleza gostosa, produz o dengo, que por vezes está apenas no quebranto de um olhar, às vezes na modulação da voz terna, de súbito no gesto, como um convite. Não sei definir certas mulheres senão pelo dengo que possuem”.
Com o diz o letrista Aldir Blanc, “o Dorival foi quem inventou o gênero `samba Caymmi`(...). Perguntar se existe estilo de samba é como duvidar da existência do vatapá”. “Se “com qualquer dez mil-réis e uma nega” se faz um vatapá, com que ingredientes se faz, então, o samba Caymmi? Aldir Blanc dá o recado: “um bocadinho mais de sensualidade, uma pitada generosa de preguiça da boa, sorrisos morenos de Dora, das Rosas e da Marina (no Brasil, as louras também são morenas), roupa branca em pele escura, brisa de mar, a ousadia das jangadas, ciúmes, dengos, uma vasta dose de sacanagem, rir como quem reza em 365 igrejas (..). Sensualidade, preguiça, mulheres, dengo e religiosidade estão nos sambas de Caymmi”.
“O samba de Caymmi - escreveu Bosco – é `sacudido`, `rebolado´, buliçoso; deixa a gente mole e, quando se samba, todo mundo bole. Através da qualidade feminina do dengo, tornada um princípio estético, pode-se entender um aspecto decisivo da singularidade do samba de Caymmi”. E Francisco diz mais: “Simples, coloquiais, apimentados, dengosos, rebolados, os sambas de Caymmi possuem aquela que seja talvez a virtude maior da canção popular: provocam a vontade de ouvi-los e reouvi-los, de decorá-los (o que se faz sem se dar conta) e cantá-los e cantá-los e cantá-los. São canções que parecem anônima, parecem ter surgido espontaneamente das igrejas, dos sobrados, das ladeiras, do dendê, do vatapá, do requebrado das baianas”. O encantamento da obra de Caymmi vem da representação de uma Bahia alegre, sensual, solar, mestiça, erótica, bela, em suma, feliz. “Não sou de dores nem queixas”, diria Caymmi, já do alto de seus noventa anos.
“Ficamos sem mar, sem vento, sem rio, sem floresta. Ficamos num deserto” (Aldir Blanc, compositor). “O frescor e a modernidade dele eram eternos” (Carlos Lyra, cantor e compositor). “Ele cantou da forma mais íntegra e verdadeira. Falou do povo baiano, da natureza, do mar, da Bahia, com uma verdade e simplicidade incríveis. É um compositor único, de uma grandeza incrível, que falou do amor de uma maneira muito especial” (Gal Costa, cantora).
Com a morte de Dorival Caymmi, o país perdeu o último dos grandes cantores e compositores da década de 30. A afirmação foi feita pelo novelista Gilberto Braga, no Salão Nobre da Câmara dos Vereadores do Rio, onde o corpo de Dorival está sendo velado. “Com a sua morte, não fica mais nenhum deles vivo. Apesar de a década de 60 ter sido brilhante do ponto de vista musical, a de 30 é o apogeu da música popular brasileira, com Ari Barroso, Noel Rosa, o próprio Dorival e muitos outros”.
João Valentão é brigão
Pra dar bofetão
Não presta atenção e nem pensa na vida
A todos João intimida
Faz coisas que até Deus duvida
Mas tem seu momento na vida
É quando o sol vai quebrando
Lá pro fim do mundo pra noite chegar
É quando se ouve mais forte
O ronco das ondas na beira do mar
É quando o cansaço da lida da vida
Obriga João se sentar
É quando a morena se encolhe
Se chega pro lado querendo agradar
Se a noite é de lua
A vontade é contar mentira
É se espreguiçar
Deitar na areia da praia
Que acaba onde a vista não pode alcançar
E assim adormece esse homem
Que nunca precisa dormir pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo do que sua terra. (João Valentão, de Caymmi)
É dengo que esse samba tem
“Em algum lugar entre a natureza e a cultura, a tradição e a invenção, a história e o anacrônico, a obra de Caymmi guarda um mistério tanto mais recôndito quanto mais exposto, na simplicidade plenamente oferta de suas canções”. A opinião é do poeta e letrista Francisco Bosco que traça o retrato de Dorival Caymmi no livro da série “Folha explica”, dedicado ao compositor baiano. Bosco esquadrinhou a obra caymmiana em “sambas sacudidos”, “canções praieiras” e “sambas canções”. Viajando com propriedade e na medida certa sobre um artista cuja singularidade compara à Clarice Lispector na literatura e Iberê Camargo nas artes plásticas.
A obra, pequena quantitativamente e imensa qualitativamente, é formada, em sua maior parte, por clássicos da canção popular brasileira. Segundo Bosco, os princípios composicionais norteadores da obra caymmiana são sinceridade, simplicidade e elaboração. “Em sentido geral, a obra de Caymmi é feliz, afirmativa e solar, apresenta uma Bahia pré-industrial, alegre e sensual”.
A obra de Caymmi não tem antes nem depois na tradição da canção popular brasileira. “Um estilo inconfundível quase sem seguidores na música popular brasileira”, comenta o pesquisador André Diniz. “Não tendo antecessores, imprimiu sua marca inconfundível em tudo o que fez (...) Caymmi não se filia a nenhuma corrente, escola ou modismo”, declarou outro pesquisador, Jairo Severiano. “Ele é um autor inaugural. A música dele, e como ele casa música e letra, com tanta maestria, é sem igual na MPB”, enfatizou Chico Buarque. Para Francisco Bosco, Caymmi é um grande mestre cancionista porque, justamente, pensa e cria a canção levando em conta essa totalidade indiscernível. “Dentro de sua obra tem –se a impressão de que letra e música nasceram juntas, ou antes, nunca nasceram – sempre existiram”.
Vamos nos deter aos sambas sacudidos, repletos de remelexos e requebrados. Para muitos, as ladeiras de Salvador entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta pode ter sido de extrema importância para os sambas de Caymmi. Foram elas as principais responsáveis pela beleza das pernas e os glúteos torneados das baianas. Caymmi, como afirma Antonio Risério, “é o poeta do bumbum em movimento”. A vizinha quando passa “mexe com as cadeiras pra cá/mexe com as cadeiras pra lá/ela mexe com o juízo/do homem que vai trabalhar” (A Vizinha do Lado). E “quando você se requebrar/caia por cima de mim” (O Que é Que a Baiana Tem?).
E sondando o segredo do samba de Caymmi, Francisco Bosco descobre que o requebrado das mulheres em Caymmi possui uma qualidade especial, “trata-se de um rebolado gracioso, a um tempo sensual e discreto, extremamente feminino, poderoso e consciente de seu poder, mas como que brejeiro, delicado, sutil”. Até chegar a palavra chave desse feminino-poderoso: o dengo. “O dengo é a qualidade presente em todos os gestos e movimentos da mulher: ´É dengo, é dengo, é dengo, meu bem!/é dengo que a nega tem/tem dengo no remelexo, meu bem!/tem dengo no falar também//-Quando se diz que no falar tem dengo/-tem dengo!tem dengo! tem dengo! tem.../-quando se diz que no andar tem dengo/-tem dengo! Tem dengo! Tem dengo!tem.../-quando se diz que no sorrir tem dengo(...)/-quando se diz que no sambar tem dengo (...)´.”.
Em sua biografia sobre o avô (Dorival Caymmi, Cancioneiro da Bahia, Stella Caymmi), o compositor comenta a singularidade do dengo, procurando relacioná-lo a um certo mudus vivendi baiano: “Não sei de palavra tão bonito quanto ´dengo´. Dengo...Denguice...dengosa...Palavras que dizem muita coisa, que definem, por vezes, a personalidade de uma mulher. O sol do Nordeste, aquele calor das tarde pedindo rede e água de coco, pedindo cafuné e dando ao corpo certa moleza gostosa, produz o dengo, que por vezes está apenas no quebranto de um olhar, às vezes na modulação da voz terna, de súbito no gesto, como um convite. Não sei definir certas mulheres senão pelo dengo que possuem”.
Com o diz o letrista Aldir Blanc, “o Dorival foi quem inventou o gênero `samba Caymmi`(...). Perguntar se existe estilo de samba é como duvidar da existência do vatapá”. “Se “com qualquer dez mil-réis e uma nega” se faz um vatapá, com que ingredientes se faz, então, o samba Caymmi? Aldir Blanc dá o recado: “um bocadinho mais de sensualidade, uma pitada generosa de preguiça da boa, sorrisos morenos de Dora, das Rosas e da Marina (no Brasil, as louras também são morenas), roupa branca em pele escura, brisa de mar, a ousadia das jangadas, ciúmes, dengos, uma vasta dose de sacanagem, rir como quem reza em 365 igrejas (..). Sensualidade, preguiça, mulheres, dengo e religiosidade estão nos sambas de Caymmi”.
“O samba de Caymmi - escreveu Bosco – é `sacudido`, `rebolado´, buliçoso; deixa a gente mole e, quando se samba, todo mundo bole. Através da qualidade feminina do dengo, tornada um princípio estético, pode-se entender um aspecto decisivo da singularidade do samba de Caymmi”. E Francisco diz mais: “Simples, coloquiais, apimentados, dengosos, rebolados, os sambas de Caymmi possuem aquela que seja talvez a virtude maior da canção popular: provocam a vontade de ouvi-los e reouvi-los, de decorá-los (o que se faz sem se dar conta) e cantá-los e cantá-los e cantá-los. São canções que parecem anônima, parecem ter surgido espontaneamente das igrejas, dos sobrados, das ladeiras, do dendê, do vatapá, do requebrado das baianas”. O encantamento da obra de Caymmi vem da representação de uma Bahia alegre, sensual, solar, mestiça, erótica, bela, em suma, feliz. “Não sou de dores nem queixas”, diria Caymmi, já do alto de seus noventa anos.
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