19 fevereiro 2008

A Medicina aliou-se à Igreja (1)

Negar a paixão às mulheres: esse foi um eficiente modelo político que se estabeleceu para a organização social do Brasil Colônia. A estratégia imposta pela Igreja em aliança com o Estado, pela dominação do corpo social, usando a mulher ao mesmo tempo como agente e inimigo, é mostrada na obra da historiadora Mary Del Priore, “Ao Sul do Corpo”. Ela mostra que, da obrigação de se portar como católica e não se desonestar publicamente, a mulher foi – num processo que se iniciou no século XVII, atravessou o século XVIII e se fechou no XIX – empurrada para o conceito de sexo como pecado, aturável apenas dentro do “santo matrimônio” e com fim único de concepção.

E a Igreja tinha à disposição argumentos da medicina. Como registra a autora, “a medicina aliou-se à Igreja na luta pela constituição de famílias sacramentadas, e o médico, tal como o padre, tinha acesso à intimidade das populações femininas. Enquanto o segundo cuidava das almas, o ‘doutor’ ocupava-se dos corpos, sobretudo no momento de partos dificultosos e doenças graves. Ao penetrar o mundo fechado de pudores, mistérios e usos tradicionais dessa espécie de terra desconhecida que era o corpo feminino, o médico interrogava a sexualidade da mulher e era também por ela interrogado”.

Cercada por confessores e pregadores, a mulher era admoestada a não sair sequer à rua na ausência do marido se, para tanto, não tivesse autorização escrita. Estado e Igreja uniram-se num projeto de dar uma organização social à colônia, trocando aventureiros por famílias. O papel da mulher nesse contexto necessariamente seria grande. Mas, dentro da visão misógina da Igreja, ela não era confidencial. Para exorcizar a gula de pecadora, pregava a Igreja, só transformando-se em santa mãe. Amamenta era sua missão sagrada. Sexo durante o aleitamento era condenado. Mas a aparente submissão que o papel de mãe santa e recolhida lhes impunha deu-lhes o controle direto sobre a casa e os filhos. Na fala de confessores, teólogos, médicos e moralistas fabricou-se, na opinião de Mary Del Priore, um limite e uma função para esses corpos. Seu objetivo era demarcar um papel social para a mulher, normatizar sua sexualidade e sua alma, domesticá-la no interior da família exclusivamente para servir aos fundamentos da colonização portuguesa na América.

O historiador de Berkeley, especialista em historia social e da medicina, Thomas Laqueur analisou em seu livro “Inventando o Sexo – Corpo e Gênero dos Gregos a Freud”, a invenção cultural da bipolaridade sexual humana. Nem sempre, dizia ele, concebemos os seres humanos divididos em dois sexos com características próprias. Até as últimas décadas do século 18, a medicina só admitia a existência de um sexo, o masculino. O que, atualmente chamamos de sexo feminino era visto como um sexo masculino “frio” e “invertido”. Ou seja, a mulher não possuía o mesmo “calor vital” do homem, e, por isso, seu sexo não se desenvolvia para fora, mas para o interior do corpo: o útero era o escrito, os ovários, os testículos, a vulva, o prepúcio, e a vagina, o pênis.

A medicina ocidental do século 18 não podia representar a sexualidade humana como dividida, originalmente e de forma bipolar, entre sexualidades masculina e feminina. O modelo científico dominante era o modelo do sexo único. O modelo, inspirado na filosofia neoplatônica de Galeno, via a mulher como um homem invertido e inferior. Invertido porque seus órgãos sexuais eram os mesmos dos homens, só que voltados para dentro. Inferior porque a mulher era concebida como um homem imperfeito, a quem faltavam a força e a intensidade do calor vital, esse último responsável pela evolução do corpo até a perfeição ontológica do macho.

Os médicos, portanto, notavam as diferenças anatômicas entre homens e mulheres, assim como distinguiam o masculino e o feminino. Mas não interpretavam o que viam como diferença de qualidade entre espécies naturais, e sim como diferença de graus em uma mesma espécie. Nos fins do século 18, tudo muda. Os revolucionários europeus – franceses, sobretudo – precisavam justificar a tradicional desigualdade entre homens e mulheres, de modo a torná-la compatível com os ideais igualitários republicanos. Todos os “homens” eram iguais, mas as mulheres eram mentalmente frágeis, infantis e, por conseguinte, estavam incapacitadas para exercer as tarefas intelectuais, científicas e políticas dos homens. Não por serem “imperfeitas”, do ponto de vista ontológico, mas por serem diversas, do ponto de vista biológico. A teoria do sexo único justificava o poder masculino e a insignificância histórica das mulheres, limitadas, na vida pública e nas atividades do espírito, pelas tarefas da maternidade. Existe um sexo, o masculino, e seu complemento menos perfeito, porém necessário, o sexo feminino. No “pacote” das características sexuais primárias e secundárias, define-se o que seriam os homens e as mulheres, seu lugar na sociedade, os limites e o alcance de seus destinos pessoais.

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